As cabeças rolarão, não haverá piedade, clemência ou salvação. Contato e envio de textos: cabecascortadas@gmail.com

Um caso de amor?

I

Que vila pequena! Era somente uma rua, de terra, com algumas casas ao largo e ao final uma praça, sem igreja ao fundo. Tudo meio empoeirado e avermelhado, cor da terra. Poucas árvores e só. O tempo não passava devagar por lá, ele não passava. Os poucos habitantes trabalhavam nas grandes estâncias que ficavam ao redor. Saíam cedo e voltavam tarde. No único estabelecimento comercial, somente charque e cachaça. Da ruim. Algum enlatado vencido e arroz a granel. Pedaços de pano e fitas e fumo em corda. Mais nada.
Na soleira, sentada olhando o nada, uma menina de seus dezoito anos, por aí, vestida com uma saia poída e curta, mostrando as coxas roliças e morenas e uma blusa, que deixava os seios livres, de tecido quase transparente. Parecia esperar algo, apesar de não haver o que esperar. Nada passava, nada acontecia. Somente os dias, que iam acavalado-se uns sobre os outros, deixando a todos mais perto da morte. Ela era a caçula da vila. Nem nascimentos havia mais. Óbitos nem tanto. Há poucos dias mesmo, enterraram um morador que foi encontrado sentado numa cadeira de balanço, já em estado avançado de decomposição. Segurava nas mãos um bilhete, escrito pela ex-mulher, datado de cerca de dez anos antes, onde ela dizia que voltaria. Somente esperava juntar algum dinheiro e voltaria. Este era o futuro de quem espera algo ou alguém neste lugar: não só a morte, destino de todos, mas a solidão. Pois a menina, talvez por intuição, apesar de parecer, não esperava nada. Nem ninguém. Possuía na rotina invariável um aliado contra os dias que vinham também sempre iguais. Levantava quando os raios do sol entravam no casebre e seus pais saíam, usava uma bacia, que deixava preparada à tardinha, com água da sanga para se lavar, amassava o pão, assava, comia, sentava na soleira. Depois acendia o fogo, fazia o arroz com charque, comia, sentava na soleira. Antes da noite buscava a água e a escassa lenha, requentava o arroz e jantava com os pais, invariavelmente em um silêncio soturno. Uma que outra vez, algum vizinho pedia um pouco de fumo ou arroz. Deitava. Duas vezes por semana lavava os trapos que vestiam e os pendurava nos fundos da casa, sobre um arame farpado enferrujado e preto. E velho. Tudo parecia ser mais velho por lá. Inclusive ela, apesar de ser linda. Possuía um jeito e um rosto de mulher, apesar do corpo e a idade de menina. Era uma combinação estranha, mas bem sucedida. Fosse em qualquer outro lugar, já teria feito muito sucesso entre os homens. Mas lá, sequer conhecia alguém da mesma idade. Existia mais um solteiro na vila, duas casas depois, um rapaz doente que gritava todo começo de madrugada. Urrava sempre olhando o céu com uma das mãos tremendo de maneira frenética apontada para o sul. Todos já haviam acostumado. Ele dormia durante os dias e gritava durante as noites. Além dele, somente mais seis casais que também saíam cedo e voltavam tarde. Assim, sua companhia era o vizinho senil dormindo e mais ninguém. Para enfrentar os dias que sempre vinham, até na quebra da rotina ela criara uma certa rotina. Então, a cada lua cheia, dava-se ao luxo de fazer o que quisesse. Tomava banho de sanga, invadia as casas sempre abertas dos vizinhos (foi numa dessas visitas que descobriu o morto da cadeira de balanço), mexia nas poucas coisas que tinham, andava nua pela rua, fazia a comida em outra casa, enfim, o que viesse na ideia.
Pois numa destas investidas, em silêncio porque estava na casa do vizinho doente que dormia, espiou pela fresta da porta entreaberta e viu o corpo do rapaz deitado, nu, com o amarelo do sol refletido em seu peito e filtrado pelos cabelos. Olhou e voltou a olhar. E novamente. Apesar de ter se tornado mulher há cerca de cinco anos, nunca sentira nada antes, muito menos algo parecido com o calor que subia lá de baixo e deixava seus mamilos rijos. Sentiu um tremor nas pernas e um molhado denso entre elas. Saiu com pressa e correu os metros que a separavam da soleira. Ofegante, coloca uma mão na boca e a outra entre as pernas abertas, fecha os olhos e permanece até o anoitecer.

II

A noite estava clara, o rapaz levanta do colchão de palha, olha para fora e sai. Come o que encontra espalhado, e vai para frente de casa. Vira para o sul, aponta o dedo e grita. Grita o mais que pode. Grita e chora, e pragueja, e xinga e torna a gritar. Faz tanta força na mão apontada para o sul que ela treme como vara verde. Pára pouco antes de ficar afônico, senta e espera a noite amadurecer olhando para o céu. E ele gira lá em cima mostrando que o tempo passou. Em silêncio, caminha duas casas abaixo, faz a volta até os fundos. Encosta-se numa janela aberta e fica olhando, através dela, sob a luz da lua, o corpo prateado da menina, as formas difusas e belas. E delicia-se com a imagem, protegido pela escuridão. Não pensa em nada, em mais nada, exceto no corpo adormecido e puro, e se masturba com vigor. Assim faz todas as noites. Pouco antes do dia amanhecer, já voltando para sua casa, reconsidera que os gritos e a performance noturna ainda eram o melhor jeito de proteger sua vida, seu desejo, seu amor. Então, espera ansioso o dia passar e quando a noite se debruça sobre tudo, novamente os gritos, os choros, o desespero e a sua menina depois. Assim foi nos próximos e nos distantes dias.

III

A menina mudou a rotina. Agora visitava a casa vizinha todos as tardes. O molhado começou a ser diário e ela acabou descobrindo o prazer. Também, nos próximos e distantes dias, fez tudo igual.

IV

E foram felizes para sempre.
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