As cabeças rolarão, não haverá piedade, clemência ou salvação. Contato e envio de textos: cabecascortadas@gmail.com

Jornais no parque.

Um homem precisa de inspiração sempre. Garoava e fazia muito frio. A fumaça do cigarro, do café e meu hálito quente misturavam-se no ar. O apartamento estava repleto de uma energia boreal. A serração e a chuva fina que o céu urinava davam um toque funesto que desesperançava meu cão interior. Vesti o casaco de couro, o jeans rasgado e o velho coturno de sempre. Respirei fundo, o ar frio abriu meu pulmão. Tive a impressão de que as gotículas de umidade que adentravam pelas minhas ventas congelavam dentro de meus alvéolos perdurados pela nicotina. A rua me recebeu com um vento insolente, cruzava enquanto raspava minha careca sem educação alguma. Tanto que a porta bateu e o vidro quebrou. Atravessei a praçinha sem graça e tomei o rumo do grande parque central da cidade.
Pelo caminho, a chuva fina desenhava riscos aguados em meu casaco ralado. O crivo respingado logo perdeu o filtro, quebrou entre meus dedos melecados da vida. Sentia que a escuridão me abençoava sem medo. As folhas no chão estavam amareladas, desidratadas pelo corte da seiva, pareciam comigo, sugadas. Meu espírito fantasma vagava devagar. Meus olhos murchos encaravam a paisagem com tudo que ela me dava. Os carros passavam como tartarugas no meio de uma grande confusão. Invadi o espaço mínimo entre eles e atravessei a avenida para chegar até o passeio. As pessoas estavam com seus guarda-chuvas nas mãos, encarangadas, enrugadas como o couro de um lagarto. Eu até sentiria pena, se pudesse.
Avistei a copa das árvores por entre os prédios, a imagem riscava um fundo verde escuro. Olhava o caminho por debaixo das marquises embolado como as ruas atravancadas de automóveis. Andava afastado dessa linha imaginária que a maioria preferia e sentia calor, tomando pingos na cara fechada. A ternura não me cai bem. Cheguei e fui até o banheiro. As merdas no chão e os rabiscos nas portas e nas paredes me deram de bel ver. Saquei o pau e urinei. Ah, que alívio. Subia fumaça do mictório congelado, parecia vapor.
Ganhei a porta e avistei o chafariz vazio de água e cheio de folhas de jornais desmontados e abandonados. Olhei o banco azul todo chuviscado e rumei para ele. Sentei e acendi um cigarro. Fiquei sentindo o vento que balançava os galhos e minhas idéias. Os caminhos por entre o parque estavam vazios como meu coração. A queda livre da temperatura fazia o termômetro eletrônico da calçada instável. A cada grau despencado o dia ficava mais interessante. Aos poucos o vento ganhava força. Como um guerreiro incansável, apoiado pela garoa constante que riscava a paisagem de fiapos brancos em fundos coloridos, de acordo com a parede mofada de cada construção.
Notei a presença do diabo. As folhas de jornais passaram a voar em bando, lentamente para o alto. Giravam em ciranda de criança triste como jamais vi. Fisgado pela imagem, afanei mais um crivo do maço amassado em meu bolso. Traguei e soltei um feixe vaporoso, fazia uma cor bonita em frente do preto e branco dos jornais endiabrados que bailavam antes do fundo que a cidade revelava. Era uma dança infinitamente tocante. Os jornais decolavam a partir do centro do chafariz como urubus, alguns partiam para longe, outros pousavam na galhada das árvores e mexiam com a força do vento num vai e vem sonolento.
O tempo fechou ainda mais. Os jornais ganharam ainda mais altura, por causa do vento que aumentava de velocidade a cada segundo. O bando tornava-se cada vez mais numeroso, estava abandonado por Deus e a mercê dos urubus que imaginava. Chegou o momento de o meu cigarro desfalecer, assim que joguei a butuca, a danada correu até a beira do esverdeado cisne de cimento que não cuspia água para encher o chafariz. Minhas meninas encontraram um sapato de camurça em tom amarelado, rebocado de barro na sola. Fiquei firme. Alguns minutos depois, já não havia mais jornais dentro do chafariz, pois todos eles ganharam vôo. Era o diabo espantando os sombrios. Foi quando mirei o centro do chafariz e encontrei o menino. Sangrava na garganta e os olhos dele permaneciam perdidos no sem fim, tão frio quanto o dia e sem nenhuma manchete sobre ele. Levantei sem reação em meu semblante, era hora de voltar e pintar um pouco.
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