As cabeças rolarão, não haverá piedade, clemência ou salvação. Contato e envio de textos: cabecascortadas@gmail.com

Ladrões do Tempo.

- É só apertar no reck e no play, ao mesmo tempo.
- Mas que merda, Ronaldo! Não tinha nenhum aparelho mais moderno para trazer não? Vamos gravar aquilo que poderá mudar toda a história da humanidade numa porcaria de gravador comprado num camelô?
- Dane-se a história da humanidade, Téo, não vê que já está gravando? Cale essa boca.
- Óquei, óquei.
Pigarreou e prosseguiu, falando bem baixinho.
Estava desconfortável embaixo daquela mesa.
- Estamos aqui, eu, Téo Soares, e meu companheiro, Ronaldo Altair, para provar aquilo que a humanidade já imaginava...
- Que chato, você! Porque fala tanto em humanidade, heim? Que obsessão!
- Dá para ficar com essa maldita boca fechada? Você está me interrompendo!
- Tá, desculpa, vá em frente Dr. Humanidade.
Téo resmungou.
- Como eu dizia, estamos aqui para confirmar aquilo que todas as pessoas já desconfiavam, apenas não conseguiam acreditar – e deteve-se, fazendo mistério – O que você vai escutar agora é uma reunião entre os homens que estão roubando o nosso tempo. Sim, meus caros amigos, vocês não ouviram errado: estamos sendo assaltados impiedosamente.

Se acomodou melhor e viu que Ronaldo estava distraído.
Pensou que o amigo era um paspalho mesmo, e que deveria ter chamado outra pessoa para ajudá-lo a desvendar crime tão safado.
Crime que Téo não demorou a perceber.
Demorou, sim, a acreditar.
Até porque não fazia nenhum sentido.

Uma noite reparou que seu dia havia sido menor que o dia anterior.
Era um homem pragmático, com uma rotina muito bem planejada: as sete acordava, as 8 ia trabalhar, as 9 ia ao banheiro (seu intestino era um relógio), as 10 tomava seu comprimido para dor de cabeça.
Um belo dia acordou as 7 e 5, e faziam 22 anos que ele acordava às 7 em ponto.
No outro, chegou 11 minutos atrasado no trabalho.
E havia saído de casa no mesmo horário, não havia enfrentado engarrafamentos, nada.
Como poderia?
A gota d’água aconteceu quando, ao invés das 9, foi ao banheiro as 9 e 10. Não podia ser possível, seu intestino jamais cometeria tamanho atraso!
Então começou a notar.
Seus horários estavam todos errados: acordava as 7 e 5 e passou a chegar atrasado em tudo quanto era compromisso – tanto que precisou sair 10 minutos mais cedo de casa, toda vez.
E para isso precisou acordar e ir dormir 10 minutos antes.
Apelou para o despertador, pois não estava acostumado a mudanças bruscas de horários.
E foi aí que teve certeza.
Programado para apitar às 7, as 7 o despertador apitou.
Téo abriu os olhos, espreguiçou-se, sentou na cama.
E já haviam passados 10 minutos!
De uma hora para outra e num piscar de olhos, literalmente.
Levantou sobressaltado e decidido a descobrir que merda estava acontecendo.
Não era possível: ele viu as horas quando abriu os olhos, e eram 7, e então sentou na cama e já haviam passados dez minutos?
Será que o relógio havia enlouquecido?
Será que ele havia enlouquecido?
Correu até a cozinha e verificou o relógio de parede: 7 e 12.
Como nunca havia percebido nada?
Logo Téo, tão observador!

Ligou para a empresa e avisou que não iria trabalhar porque estava doente.
Havia bolado um plano – um plano bastante monótono, é verdade, mas um plano: passaria o dia inteiro olhando seu próprio relógio virar minuto a minuto, segundo a segundo.
Por mais descabido que pudesse parecer, Téo tinha certeza que haviam roubado dez minutos do seu dia.
E assim passou, olhos fixos nas horas.
E foi-se a manhã, e foi-se a tarde.
Téo já começava a sentir-se um imbecil:
- Tenho que parar de assistir ficção científica.
Seus olhos doíam, mas ele pôde ver quando aconteceu: às cinco e catorze da tarde, ao invés do relógio virar para cinco e quinze, trocou para cinco e vinte e quatro.
Levantou assombrado.
Olhou imediatamente para o relógio na parede e, inexplicavelmente, ali também haviam transcorrido dez minutos em um.
Sentiu seu coração acelerar e bater em sua garganta.
Estavam mesmo roubando seu tempo!

Mas quem e por quê?
Seria só o seu ou também o das outras pessoas?
Telefonou para quatro amigos e pediu as horas, e todas conferiam com a de seu relógio usurpado.
Seu relógio não, pensou, sua vida!
Quantos minutinhos já não tinham misteriosamente desaparecido, sem que ninguém pudesse dar-se o trabalho de perceber?
Claro, eram pouquinhos, quem notava deveria acreditar que era a vida, que andava corrida, e nunca o tempo, que era roubado.

No dia seguinte, lá estava novamente Téo, ligando para a empresa para avisar que ainda estava doente.
Queria saber quantas vezes a cada 24 horas os safados, sejam lá quem fossem, roubavam seus minutos vitais.
No final das contas isso deveria representar uns bons anos de vida.
Então era por isso que acreditávamos que as pessoas viviam mais quando, na verdade, os anos é que estavam mais curtos.
Que terrível.
Muniu-se com café e sentou-se na frente do relógio.
De vários relógios, na verdade.
Precisava ter certeza.

Desta vez demorou mais.
Já fazia quase 18 horas que estava ali, sentado, quando observou: das 22 e 3 os relógios passaram para 22 e 10.
Inclusive os que estavam adiantados e atrasados: todos saltaram 7 minutos.
Téo anotou isso em sua caderneta.
Depois, somente às duas da manhã os relógios pularam novamente, e desta vez 10 minutos.
Só aí já foram 17.
E às 5 da manhã, quando o pobre mal conseguia manter os olhos abertos e sua gastrite já avisava que era hora de suspender o café, aconteceu de novo: das 5 e 5 fomos para as 5 e 13.
25 minutos roubados descaradamente em 24 horas.
175 minutos por semana, 750 por mês, 9 mil 125 por ano!

Estava chocado, mas, principalmente, intrigado.
Quem, onde, porque, de que jeito?
Foi o que descobriu, após muita investigação.
E agora estava ali, embaixo de uma mesa, prestes a comprovar por A + B o que já tinha certeza absoluta: estavam roubando o nosso tempo.
Safados.
Só se incomodava de ter de registrar tão significativo momento em um gravador de camelô.
Fitas cassetes, quem usa isso ainda?
E Ronaldo foi uma péssima escolha para assistente de investigação, pensava Téo.
Era muito burro, e parecia pouco se importar com o que estavam prestes a comprovar.
Seriam condecorados, considerados heróis, talvez ganhassem até uma estátua no Museu de Cera, e Ronaldo ali, mascando um chiclete.
Então, um estalo chamou a atenção dos dois para o gravador.
Os botões reck e play simplesmente desligaram.
Téo os pressionou novamente, mas era como se as molas do acionador tivessem arrebentado.
- Mas que porra é essa?
Ronaldo fez uma careta:
- Putz, parece que o gravador estragou.
- Estragou é? Pois o que deveria estar estragado era o espermatozóide do teu pai, seu maldito! E agora, o que vamos fazer? O que será de nós? O que será da humanidade?
- Ah, quer saber? Não tô nem aí para a humanidade. Lamento pelo que me roubam nos finais de semana, mas se quiserem continuar levando meu tempo de trabalho, fazem é um favor. E tô indo, porque ficar acocado embaixo dessa mesa destruiu meu nervo ciático.
Ronaldo saiu, abriu a porta e se foi.
Então eles, os usurpadores, entraram e acomodaram-se em seus lugares: a reunião ia começar.
E Téo ficou ali, com o gravador estragado na mão.

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- Uma coisa precisamos admitir: ele conta esta mesma história, em cada minúsculo detalhe, desde que chegou aqui.
- Daria um bom escritor, se não estivesse demente.
- O mais engraçado é que ele foge de todos os protótipos de doentes mentais que já conheci, e olha que lá se vão 30 anos trabalhando em manicômios. Téo é um sujeito muito pacífico, fala pausadamente, não perde nunca a tranqüilidade e, o mais impressionante: não se contradiz.
- O que não significa que não esteja louco.
- Claro que não. Onde já se viu, ladrões de tempo... Por mais que, muitas vezes, eu também tenha essa impressão, sabemos que o tempo é algo impossível de ser surrupiado.
Médico e enfermeira observaram por mais alguns minutos Téo sentado em sua cama, olhando fixamente para um relógio de pulso parado.
- Doutor, não quero lhe apressar, mas já são 6 horas.
- 6 horas? Meu Deus, o tempo voou! Agora a pouco eram cinco e meia! Tenho uma reunião, preciso correr. Até mais.
- Até.
E lá dentro do quarto gradeado e branco, Téo resmungava com a mesma parcimônia que lhe era característica:
- O tempo não voa. O tempo desaparece.
A enfermeira suspirou e percebeu que já eram 6 e 10.
- Nossa! Preciso ir também.
E nas paredes de todo o mundo, todos os relógios continuaram a virar, segundo a segundo, minuto a minuto.
Sem que ninguém pudesse perceber.

Jana Lauxen escreve: http://www.janalauxen.blogspot.com, http://www.3ammagazine.com/brasil, http://cafeespacial.wordpress.com e http://www.jornalvaia.com.br
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