As cabeças rolarão, não haverá piedade, clemência ou salvação. Contato e envio de textos: cabecascortadas@gmail.com

Nossa Senhora do Bom Parto

Um dia de cão. A estafa me consome. A medicina é uma benção, mas para quem decide trilhar por esse caminho precisa estar preparado para dias como o dia de hoje. Tudo que precisava era de algo que me tirasse do ar, para eu não pensar em nada, em nenhum ser humano.

Meus colegas dizem que os seus plantões dão até para tirar um cochilo. Mas parece que todos decidem ficar doente do sábado para o domingo, justamente o dia do meu plantão. Tive que reanimar três pacientes com parada cardíaca. Outro com câncer que ainda não tinha sido diagnosticado, mas pelo andar da carruagem da morte, ele não demora muito, está em estágio avançado.

Tudo isso cansa muito. Escolhi a medicina por amor, por paixão. Dinheiro é bom sim, não sou nenhum comunista, gosto do dinheiro, mas a medicina está em minha vida acima de qualquer coisa. Mas desde que me formei, depois de acabar a residência, nunca tirei férias, e lá se vão quatro anos. Estou muito cansado, preciso desligar.

Foi aí que descobri o quanto o clorofórmio faz bem. Tinha ouvido de outros médicos, que não existe nada melhor para relaxar que cheirar clorofórmio. A ação é rápida, um estado de sair de dentro de si, de perder o controle dos músculos. Dou risada sozinho, realmente me sinto bem quando estou cheirando. Sempre consigo com os amigos farmacêuticos, daí depois dos plantões gosto de espairecer. E quando chego a minha casa, todo o estupor já passou.

Mas parecia que os santos todos não estavam indo muito com minha cara. Peguei um puta transito até chegar ao beco que sempre paro o carro e relaxo e que fica próximo a minha casa. Mas num percurso que faço em no máximo vinte minutos em dias normais, hoje fiz em quase uma hora. Mas tudo bem, afinal, eu estava próximo de me desligar de tudo, porque depois de cheirar bastante, eu iria para um bom banho e depois cair na cama.

Parei o carro, antes de tudo, fumei um cigarro. Mas fumei como se deve fumar – apreciando cada tragada, não pensando em nada além do ato de fumar. Foi nesse momento que vi uma mulher passar pelo carro, até levei um susto. Mas relaxei. Era uma dessas moradoras de rua. Ela estava acompanhada de muitos cães, alguns inclusive com calazar. A mulher carregava um saco cheio de vasilhas plásticas, certamente as tinha catado nos lixos da cidade. Eu já tinha visto essa mulher pelas redondezas e sabia inclusive que ela estava grávida. Sua barriga estava enorme. Ela fumava um cachimbo. Mas depois percebi que não era um cachimbo comum, era daqueles que os drogados usam para fumar crack.

Como uma criatura grávida podia fazer aquilo? No ímpeto da ética, na missão da minha profissão pensei em intervir, em ir lhe falar, mas meu estado de estafa não permitia isso, afinal era uma drogada, uma moradora de rua, que certamente estava sorvida pelas drogas há muito tempo.

Voltei a me concentrar no meu momento. Afinal, estava ali para isso. Molhei a gaze com o clorofórmio, e dei a primeira cheirada. Meu corpo começou a deslizar pelo banco do carro. Como é boa essa sensação. Sair de si. E fui cheirando, cheirando. Depois eu já chupava o líquido como se fosse gelo derretendo. E como num feixe de ilusão ouvi um grito. Estrondou pelo beco e por meus ouvidos sensíveis. Eu estava sob efeito do cloro, e tudo passou a ser tenebroso. Saí do êxtase para entrar numa onda de horror. Porque comecei ver tudo de uma forma diferente.

Percebi que além dos gritos, ela chamava por nossa senhora do bom parto. Os cães latiam ao redor dela. E isso dava um ar nebuloso e de pavor ao beco. Sabia que ela estava em trabalho de parto, via como ela se contorcia. Mas eu não conseguia vê-la como um ser humano. Em minha viagem, ela era a sombra louca da noite.

Eu chupava a gaze molhada de cloro e as sensações iam e vinham me deixando mais calmo, me distanciando dos gritos. Mas logo eu conseguia ver aquela sombra feminina e consegui entender que os cães esperavam o filho e um deles poderia ser o genitor da cria que dali sairia. A mulher-sombra-da-noite chamava por uma santa que nunca ouvi falar. E logo ela que a pouco puxava uma fumaça em seu cachimbo, estendia sua voz a nossa senhora do bom parto.

Vi a criança-cão despontar pelas entranhas da mulher, acho que a santa a ajudou, mas era um serzinho miúdo. Os cães rodavam, latiam. Acho que feliz pelo filho nascido. Eu puxava o liquido da gaze. E comecei a entender. Os cachorros esperavam uma refeição. A mulher estava fraca, seu sangue corria. A criança não chorava. Os cães começaram a brigar pela comida. Rosnavam, latiam. Eu nada podia fazer. A mulher estendeu o braço com o resto de forças que tinha e pegou o cachimbo e o acendeu levando-o até a boca. Tragou profundo. Eu dei outra puxada na gaze, acho que estou desmaiando...

Plínio Gomes escreve: http://zingador.blogspot.com/, http://pliniogomes.blogspot.com/, http://blogcabecascortadas.blogspot.com/ e http://universoderetalhos.blogspot.com/

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