As cabeças rolarão, não haverá piedade, clemência ou salvação. Contato e envio de textos: cabecascortadas@gmail.com

Infiel.

A vida de um novo autor é dureza. Estava em dificuldades e minhas economias pela metade. Apelei. Fechei o negócio com um corretor de imóveis online. A casinha ficava numa cidadezinha que não exigia grandes rendimentos e me livrava do alto custo de vida na metrópole. Vi algumas fotos do casebre, paguei e mudei. Tomei o ônibus em menos de uma semana.
Embolei a garganta logo que Cheguei. A urbezinha exalava cheiro de poeira, o tempo dava a impressão de que não corria e tudo parecia morto. Até o sol estava sem vida por aquelas bandas. Olhei para os lados e vi aquele bar escuro, não havia ninguém atrás do balcão, acho que não existia um número suficiente de fregueses capaz de preocupar o responsável pelo atendimento. O guichê das passagens também estava vazio, acho que o fluxo de passageiros também não era aceitável para manter o atendente atento em seu posto.
O chão era sujo e o motorista do ônibus fazia cara de tédio enquanto esperava pelo horário de seguir. O cobrador desceu com calma para ver se havia alguma encomenda, foi a primeira vez que o vi tão lento desde que entrei naquele transporte, o cara parecia intoxicado por uma poção lerda, pesada. Quando o cobrador voltou, apresentei o bilhete e retirei minha bagagem. A terra era vermelha, grudava na barra da calça e na mochila.
Foi quando o ônibus partiu sem nenhum passageiro novo e sem nenhuma nova encomenda. O motorista e o cobrador pareciam aliviados pela partida. Fiquei olhando o ônibus sumir por entre a poeira que subia do chão. O vento era frio, não havia ninguém pela rua, era estranho, ainda mais para um homem que veio da agitação da cidade grande. O tempo estava emburrado, mesmo assim todo aquele marasmo me parecia exacerbado para uma sexta-feira de tarde. E depois, com ou sem ventania, todos precisam ir e vir o tempo todo e por vários motivos.
Minha garganta seca me provocava para que entrasse no bar, mas estava receoso, era tudo tão feio e abandonado que num primeiro momento hesitei. Permaneci parado por alguns instantes, estava na dúvida entre ir para meu novo lar ou esperar que o tempo decidisse o que queria, por que sempre odiei andar embaixo de chuva, por isso temia em me arriscar pela rua.
Olhei mais uma vez em volta e o vento me surpreendeu de novo, encheu minha garganta com aquela terra de que falei. O gosto de barro tomou conta de meu paladar, não havia outro jeito, por isso tive de entrar no bar. Vi a mulher sentada na mesa - quase imperceptível, por causa da penumbra que afrontava a grande porta lateral - com uma máquina de calcular bem ao lado de um calhamaço de dinheiro.
- Bom dia. - falei, meio sem jeito, tentando me fazer visível, depois de permanecer em pé ao lado dela por mais de 5 min.
Ela não respondeu.
- Oi. Preciso de uma água. - chamei novamente.
A gorda levantou calada, contornou o balcão e alcançou uma garrafa 600 ml.
- Dois reais. - foi o que ela disse, enquanto me olhava de olhos arregalados, como se visse um fantasma.
Paguei e tratei de sair logo dali. Afinal de contas, o comitê de boas vindas não foi agradável. O comportamento da mulher me aborreceu, pois a meu ver, uma terra santa deveria ter pessoas muito mais espirituosas. Talvez fosse por isso que o semblante do motorista e do cobrador era de alívio durante a partida. Quando coloquei o pé na rua, minhas costas doíam. Credo, que energia parada, pesada, porra, caralho, que coisa, fiquei pensando, tomara que isso tudo tenha sido apenas uma má impressão.
Acendi um cigarro e procurei um taxista, a ventania aumentava e o céu ameaçava despencar. Não achei. Bem, numa cidade vazia como aquela, a presença de um chofer era algo realmente improvável. Incomodado e conformado, respirei fundo e decidi correr o risco de chegar encharcado. A primeira tragada embolou com a terra e notei um rastro de fumaça em marrom com vermelho brotando de minhas ventas. O meu crivo vagabundo parecia ainda mais forte, por causa da mistura do alcatrão e a nicotina com aquela poeira que a refega esparramava.
Saquei o papel do bolso para conferir meu novo endereço. Andei algumas quadras e vi uma torre enorme, com mais de quarenta metros e uma grande igreja em frente de uma praça tão imensa quanto a tal da torre e a igreja. Um santuário gigante. Estranhei algo daquele tamanho em um lugar tão abandonado e pequeno, mesmo tendo a fama de terra santa.
De repente, um susto. Uma voz que parecia vir do além seqüestrou minha atenção. Era tão distante e tão fria que por um minuto achei que estava delirando. O recado vinha embalado numa música instrumental e fúnebre: “Comunicamos o falecimento de Pedro das Quantas, seu corpo será velado na capela mortuária a partir das 19h. Oremos por nossas almas e por essa que encomendamos ao céu. Amém.” A música foi baixando de volume e tudo silenciou.
Fiquei tão encafifado que me plantei pensando e admirando a torre gigante. Quando meu transe passou, olhei para a esquina e vi o número 666 no outro lado da rua, era ali, uma construção tão simpática quanto nas fotos que o corretor me enviou por e-mail. Sinal de que foi correto comigo. Estranhei que o portão estava aberto. Eu nem lembrava quando vi um portão sem cadeado na vida.
Adentrei com o pé direito, estava limpa, a mobília chegou intacta e foi disposta exatamente como indiquei aos homens responsáveis pela mudança. Ufa, já me sentia quase contente. Conferi as torneiras e jorrou água. Tomei um copo e percebi que era pura como eu jamais havia experimentado. Adorei. Bebi mais dois copos gigantes. Fui para o chuveiro. A poeira grudou em mim de um jeito que não havia saída. Foi o banho mais longo de toda minha vida.
Limpo, fui para a sala. Acendi um cigarro e abri as janelas. Entre uma tragada e outra, notei uma grande movimentação de carros. Pensei que fosse um bar do outro lado da rua. Tive a idéia de sacar meu litro de uísque da mochila, meu plano era encher a cara e depois sair para dar uma olhada no lugar e quem sabe descolar um corpo para me enroscar, já que a tempestade ficava só na ameaça.
Coloquei um DVD do Pink Floyd. Que maravilha, finalmente um pouco de diversão, pensava enquanto ouvia e via as crianças destruindo as carteiras escolares para depois rumarem para aquela máquina gigante que transformava os pestinhas em carne moída. Quando o relógio bateu 21h estava mais louco que nunca e fui para a rua. Percebi que os carros não paravam de chegar e se amontoavam na esquina, opa, me dei bem, pensei.
Assim que me aproximei notei que se tratava de um velório. Foi quando juntei uma coisa com a outra e deduzi que o lugar era o local anunciado pela tal voz misteriosa. Achei melhor voltar para casa. Entrei e fui direto para a cama, estava alto e desapontado, queria dormir para acordar pela manhã de humor e vigor renovados. Nem os sapatos eu tirei.
Acordei perto das 9h, o sol adentrava pela fresta da janela e avisava que o tempo estava ótimo. Ainda sonolento, tive a impressão de ouvir uma música católica. Saí da cama azedo, com a cabeça doendo, escarrei no chão e blasfemei. Joguei a culpa pelo azedume no uísque da noite passada e no despertar nojento. A boca estava com um gosto horrível. Acendi um cigarro e preparei meu café. Abri as janelas e a música soou ainda mais alta. Olhei para os lados e avistei uma porção de gente caminhando para a igreja. Foi quando me dei conta de que a torre da basílica interagia o tempo todo com os moradores do lugarzinho.
As pessoas que passavam pelo passeio me olhavam de um jeito estranho e não mostravam os dentes. Acho que meu visual chocava os caras. Era muito engraçado. De repente a música cessou, voltei para a cama e apaguei. Dormi até o final da tarde, quando despertei mais uma vez com o sistema de som da torre que avisava mais um recado: “Comunicamos que a missa em celebração da família será realizada amanhã, às 19h. Cordeiro de Deus, que tirai os pecados do mundo; dai-nos a paz. Amém.”
Fiquei roxo de raiva. Será que todos aqui são católicos? Pensei. Passei trinta dias nessa rotina, morria um por semana e a torre avisava. Os recados eram infinitos, nada de proveitoso era comunicado, ou era um falecimento ou uma celebração da igreja. O padre não calava a boca, estava sempre cheio de recados repetidos. E para piorar a situação, não conseguia escrever meus textos e enviá-los para os jornais e revistas que tinha compromisso. Meu editor havia ligado várias vezes, precisava concluir meu original de uma vez. Fiquei dias sem dormir para tentar escrever, mas toda hora que me acalmava e a inspiração voltava, surgia um daqueles recados lamentáveis, que me deixavam nervoso e sem inspiração novamente. Era um ciclo vicioso.
Pensei em matar o padre, sim por que era ele quem dava os recados incessantemente. No entanto, sabia que em poucos dias haveria um novo sacerdote na cidade e o problema voltaria, tinha de pensar em algo melhor, mas em quê? Até que veio uma idéia. Já sei! Preciso matar todos os católicos dessa cidade, desse jeito, esse serviço de alto-falante vai acabar pela falta de fiéis. Soltei uma gargalhada mórbida, tão gelada que cheguei ao ponto de me olhar no espelho e me impressionar com meu novo e estimulado semblante. Minhas feições eram insanas como nunca, mas o gosto de sangue que surgia em minha boca e os assassinatos que via eram divinais e provocavam uma reação muito boa em meu cérebro. Foi a primeira vez que o hediondo me gerou prazer, eu juro. Sinestesia mais que pura.
Precisava agir sozinho, por que se conseguisse um comparsa, ele poderia abrir a boca, caso fosse interrogado pela polícia. Eu não podia correr esse risco. Pensei mais um pouco e solucionei o impasse. Acessei a rede e comprei um filhote de cão pela internet. Ele faria o trabalho sujo. Só tinha de criá-lo isolado e depois soltá-lo na cidade. Acertei tudo rapidamente. Quando chegou, o tranquei dentro de uma caixa de madeira totalmente fechada, a única abertura ficava entre a base inferior da porta e o assoalho, nada maior que 10 cm. Eu não o via crescer e ele não me via alimentando-o com carne vermelha. Cinco meses depois, percebi as rosnadas vindas de dentro da tal caixa. O animal estava forte e insano. Era hora de libertá-lo.
Esperei a missa das 18h para soltar o cão. Quando percebi a movimentação em frente da igreja, fiquei ao lado da caixa e abri a porta. O danado saiu correndo exatamente como previ. Dava para ouvir os gritos na rua. Os dias seguiram cheios de ataques. Os recados que vinham da torre comunicavam a morte de pessoas estraçalhadas pelo animal. Aos poucos o caos tomou conta do lugar. O bicho era esperto e fugia para a mata depois de cada investida e transformava-se num caçador sanguinário, esperto e implacável. A população local se mobilizou, a prefeitura e a polícia, tudo em vão, o animal era uma máquina de matar.
A partir daí os recados me davam um gosto cada vez melhor na boca, e as imagens eram ainda mais fenomenais, eu nem me importava de ser acordado pelo alto-falante da torre. A sinestesia me era mais apetitosa que nunca. Enquanto as mortes aconteciam, minha inspiração voltou a toda e minha carreira profissional estabilizou novamente, por que eu transformava os ataques do cão em contos incríveis. Tudo com base nas sensações que sentia, misturadas com os recados do padre e as manchetes veiculadas pelo jornaleco do lugar.
Era uma pena ter de matar aquelas pessoas, mas o escritor dentro de mim não poderia morrer só por causa da fé católica. Em poucos dias, a população foi dizimada e o alto-falante finalmente perdeu a função. Daí para frente, decolei em meio ao perverso silêncio que se abateu sobre meus dias. A essa altura a sinestesia me era muito mais prazerosa que o sexo. Logo que enviei meu novo livro de contos, recebi uma posição.
Era meu editor do outro lado da linha:
- Alô.
- Carlos, seu novo livro de contos é tão malvado quanto funesto. Já está em fase de diagramação e logo será impresso. Até mais, amigo.
Desliguei e sorri macabramente. Foi o prazer mais impetuoso que senti. Naquele momento minha sinestesia era forte como a morte. De repente, ouvi um rosnar, era o amaldiçoado cão, que baixou as orelhas e veio até mim, deitou e lambeu meu coturno em sinal de devoção. A partir daí saí em odisséia pelo mundo, para promulgar minha literatura maldita. Seis meses depois estava gélido e maltrapilho, a pisar solos santos e carcomer carne católica, mas sempre, sempre ao lado de meu cão assassino. Um ministério arrebatador, sanguinário, perverso, prazeroso, infinitamente sinestésico e infiel.

Afobório escreve: http://www.afoborio.blogspot.com/ - www.e-blogue.com/blogs - www.3ammagazine.com/brasil - http://www.becodocrime.net/
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