As cabeças rolarão, não haverá piedade, clemência ou salvação. Contato e envio de textos: cabecascortadas@gmail.com

Arrependimento

É difícil lembrar com detalhes coisas que ocorreram tantos anos atrás, mas recordo de tudo. Estava com meu bodoque, feito de uma forquilha de pitangueira e borracha de câmera de caminhão, bem grossa, sem nenhum risco no cabo. Todos, sempre que matavam algum animal, faziam um traço com canivete na madeira crua. O meu estava liso.

A mata era fechada e muito verde, principalmente na época da primavera. Era um lugar permitido, pois ficava perto de onde morávamos. Cheguei lá disposto a terminar com minha inferioridade. Haveria de usar o canivete muito afiado, que levava nas meias para qualquer eventualidade. Sabe-se lá, havia muitos inimigos, eu é que nunca encontrei nenhum - sorte deles.

Peguei no caminho uma pedra redonda, nem grande nem pequena, pesada o suficiente: a pedra ideal. Entrei pelas trilhas já conhecidas e fui até um lugar escondido, perto de um barranco de cerca de dois metros. Lá embaixo, corria um fio de água. Sentei e permaneci em silêncio. Armei o bodoque com a pedra e me aliei ao tempo. Em breve algum pássaro viria beber água. Não demorou mais que minutos e lá estava ele: pequeno e faceiro, amarelo vivo nas asas e azul muito escuro no peito. Chegou meio desconfiado, somente nos galhos altos, pulando rapidamente entre um e outro. Permaneci imóvel. Ele foi criando confiança até que cedeu à sede e parou perto de mim, muito perto. Ficou mexendo a cabeça nervosa - e com razão de estar - como se pressentisse algo. Cheguei a ver seus olhos cheio de vida. Calmamente aprontei minha arma. Estiquei a borracha junto ao rosto o máximo possível, alinhada com olho fechado, e larguei.

Agora, cinquenta anos depois, sei a razão desta lembrança estar tão viva. Hoje devo receber o resultado dos exames, da biopsia, para ser mais claro. Parece que tudo que fiz neste meio século não foi importante. Que o resultado, já está escrito com uma letra fria e pontilhada, depende do desenrolar da história do pássaro e não da minha. Então, se é assim, deixe-me terminá-la.

Larguei e ouvi o zunido assassino e rápido. A pedra dilacerou a cabeça do pequeno pássaro. Olhei-o caído no barro com certa curiosidade. Peguei meu canivete e, quando ia marcar o cabo do bodoque, desviei o olhar para ele novamente. Pulei para ficar ao seu lado. Senti-me estranho. Fiz um enterro com direito a cruz e tudo. Pus umas pedras protegendo o lugar e garanto que estão lá até hoje. Neste dia aprendi a chorar de uma forme diferente e não marquei a madeira. Nunca usei meu canivete.

O resultado deu positivo: maligno.