As cabeças rolarão, não haverá piedade, clemência ou salvação. Contato e envio de textos: cabecascortadas@gmail.com

Senectude.

Dias estranhos, estes últimos, dias gigantes. Garanto que o guardinha vai dizer baixinho: novamente a ratazana de museu. Mas pouco me importo, enquanto o quadro estiver aqui e os problemas lá em casa, vai ser assim. Melhor nem lembrar os bons tempos. Havia sexo, admiração e até amor. Acho que era um sentimento verdadeiro, pelo menos parecia. Em uma noite quente, lembro bem, ele chegou pouco antes do normal e ficou à espreita perto da porta. O susto foi tão grande que todos meus livros e polígrafos ficaram espalhados pelo gramado. Nos amamos ali mesmo, correndo o risco de sermos vistos. Isso nos excitava ainda mais. Era selvagem, violento até, mas carinhoso. Uma combinação pouco provável, mas verdadeira, além de não fazer parte de meus delírios. Nossa vida razoável e com amor sempre seguiu sem surpresas, nem boas, nem más. Nem filhos, nem filhas. Nem amigos, nem amigas. O que realmente aconteceu não foi nada abrupto, foi suave como uma brisa: os anos, a velhice. Nem dá para dizer que não fomos avisados. Fomos sim. A cada fase uma pequena mudança. Um dia, uma semana, um ano, uma década! Parece que o guardinha até sorriu. Esta escadaria me atrapalha. Tenho que tomar cuidado. Sem bengalas - meu lema - sem senzalas. Está lá meu banco e... meu quadro. Lindo, maravilhoso. Tomara que hoje não venha nenhum colégio. O índio sobre a árvore, com aquele cabelo, me intriga. Parece um moicano ou coisa do gênero. Como essa obra me acalma. Poderia passar - e na verdade passo - o dia aqui. Antes meus propósitos eram outros. A primeira mudança acho que senti pelo nariz. Ele ficou com um cheiro forte. Suas roupas tinham um suor permanente e indesejável. Eu suportava, mas aquilo me causava ânsia. Ele chegava e por trás do perfume caro eu só sentia o fedor da velhice, e então recuava. Nunca neguei afeto, um beijo ou uma masturbação sequer, mas o mesmo que antes fazia com prazer, em certo momento com indiferença, no final - que ainda não terminou - com ânsia. Duas ou três vezes corri para o banheiro para cuspir esperma e vomitar dignidade. Ainda bem que tudo foi rareando, como os olhares, inclusive. No princípio, sobre uma colcha de crochê remendada e colorida, ficávamos horas apenas nos encarando, sem sorrir, sem falar, sem pensar. Nossas imagens nos alimentavam e se sustentavam. Éramos bonitos, não como o quadro, mas normais e saudáveis. O guardinha passou duas vezes: hora de ir.
Como demorou esta noite. O porteiro sorriu novamente. Pode nem ser uma pessoa ruim afinal, nem todas são, eu acho. Estas escadas estão com os degraus cada vez maiores. Enfim, meu banco, meu quadro. Ele é lindo. Aqueles dois, com armaduras, bem ao centro, lembram das que não tive. Que associação medíocre, mas verdadeira. Eu sempre estive à mercê, sempre estive fragilizada. Ao passado: depois de nos olharmos, nem sempre havia sexo. Às vezes, começávamos a fazer nossas coisas, estudar, cozinhar, sei lá, sem trocar nenhuma palavra. Era como se tudo fosse planejado sem plano algum. Estranho que esses anos parecem ter durado meses somente, e os últimos dias, anos. Pois desse silêncio até meu vômito foi uma passagem somente, e da primeira ânsia até hoje, nenhuma, tão rápido foi. Sou uma velha triste e só, apesar de ter em casa um decrépito que tenta me prender todo dia. Minha sorte é que suas forças andam menores que as minhas. Ele é ruim, eu sou pior. Antes que que ele aja, eu faço: quando saio, passo a chave e deixo o coisa ruim trancado no quarto até voltar. Fiz bem em tirar o telefone e avisar aos poucos vizinhos que ele dormia o dia inteiro. Podem pensar que eu sou má, sabe como são as pessoas. Estranho é que não aconteceu nada conosco, nada que marcasse. Nenhuma traição, nenhum grande desamor, nada que fosse realmente importante. Somente aqueles detalhes, mostrando que os anos estavam chegando e fazendo o que precisam fazer: nos envelhecer. Sempre pensei que o cheiro fosse o princípio de tudo, mas não foi. Nada estranho foi o começo. Na verdade, o começo foi mesmo o amor. Ele é assim mesmo, resiste somente aos bons tempos. Depois, ele não some, transforma-se em outra coisa, esta mesma coisa que me fazia vomitar e hoje me leva a lamentar. Coitado. Tenho pena dele, lá, trancado no quarto. À noite ele fica no escritório, esperando sei lá o quê. Talvez a morte. Mas nada vem pra ele, nem mesmo ela. Duas vezes o guardinha, novamente.
Ontem o moço da tarde avisou que a exposição estava no fim, mas, felizmente lá estão meu banco e meu quadro. A luminosidade dele prova que existe algo por trás da cruz. Não pode ter sido feito por uma mão humana algo tão perfeito. A vida anda estranha: eu o dia no museu, ele no quarto. À noite eu no mesmo quarto, ele no escritório. Talvez por isso nenhum de nós ainda não tenha morrido, eu acho. E faz pouco que esta exposição está na cidade, é que estamos na época dos dias-anos, por isso a gravidade disso tudo, justo agora. Não vou ficar pensando nas coisas ruins, aquelas que os anos nos trouxeram, nem das coisas boas, a que esses mesmos anos levaram, vou ficar como fazia com ele no começo, somente olhando e admirando, só que agora o quadro, este belíssimo quadro. Nada disso: é maluquice, e o louco é ele, afinal. Sou uma mulher vivida mas íntegra, não sou senil, sou uma boa pessoa, como o guardinha sorridente, como o padeiro que não conheço, como o que não fui, como um jovem, ou um velho antes dos anos, o que seria perfeito. O mal-cheiroso no quarto, com a carne putrefando, e eu aqui, uma boa pessoa, admirando uma verdadeira obra de arte. Somos muito diferentes. Agora eu que estou à espreita, somente esperando que o mau cheiro cesse, e vou esperar aqui, sem me mexer, sem fantasiar, apenas olhando o quadro. Duas vezes, já...
Ontem ele falou novamente. Este guardinha da manhã é bonzinho, o da tarde não. Meu lanche foi proibido. Não posso mais comer no museu. Não vou mais almoçar, então. Lá está meu banco, sem meu quadro. Somente a luz na parede vazia, frente ao banco vazio. A escada me cansou, deixa eu sentar. Não sei por que fizeram isso, mas ainda lembro dos nativos nus, cheio de crianças, sentadas e deitadas pelo chão, como animais no cio. Estou sentindo o gosto dos anos em minha boca. Parece que meu vômito ainda está em minhas bochechas. Duas vezes, já?
Não me sorriram ontem. Ele não é mesmo bonzinho. Este da manhã é, mas hoje também não sorriu. Parece que mudaram de andar. Sei que meu quadro não está mais lá e... Meu deus, nem meu banco. Levaram meu banco. O que faço? Vou embora deste lugar horroroso. Gente má, gente ruim. Minha casa é ao lado, muito perto. Vou pra lá e resolver o que fazer. Estranho este portão de ferro, devo ter tocado nele milhares de vezes e ele nunca me pareceu tão gelado. A fechadura da porta sempre foi larga, com essa chave antiga e pesada. Meu quarto está aberto e vazio. Ele está no escritório? Velho mal-cheiroso e fujão. Eu preciso chorar. Preciso desesperadamente. Mas que inferno, não consigo! Só pode ter sido os anos que levaram também minhas lágrimas. Não há ninguém aqui, como o quadro não está no museu. Como o banco. Como eu que também não estou lá. Esta réplica da obra A Primeira Missa no Brasil, igual ao da exposição, na parede da sala, me conforta. Mas, então, qual a razão de eu ter ido ao museu nestes dias gigantes? Não sou louca e sei a resposta: é que lá meu velho certamente não estaria. Nem ele nem o cheiro ruim. Aqui não sei. Afinal, ele nunca me avisou que morreu.