As cabeças rolarão, não haverá piedade, clemência ou salvação. Contato e envio de textos: cabecascortadas@gmail.com

O gato de Alice.

O riso nervoso, histérico, doente, ecoava no ar do lugar. Por mais que eu olhasse em volta, por mais que procurasse, não saberia dizer de onde vinha aquele som, onde estava oculta a fonte daquela sinfonia insana. Procurava ignorar aquilo. Tinha muito trabalho a fazer e não havia mesmo para onde ir enquanto não acabasse a tarefa. O porão inteiro já estava limpo e arrumado, já havia cavado o suficiente, o entulho de piso quebrado e da terra removida já haviam sumido. Agora faltava a parte mais delicada, o acabamento.
Uma obra simples, sem nada de especial ou técnico. Eu daria conta, certamente. Precisei só de um pouco de planejamento e alguns dias de trabalho braçal. Nada que fosse me matar. Estava tudo preparado e eu podia terminar com chave de ouro. Se não fosse a maldita gargalhada, seria tudo perfeito.
Por um momento, achei que meu cérebro estivesse me enganando, pregando alguma peça de péssimo gosto. Mas não. Isso não seria possível. Simplesmente não seria. Fiquei imaginando um jeito qualquer de inserir aquele som no ambiente, tão pouco adequado para um riso daquela natureza. Acabei por pensar que poderia ser uma espécie de gato da estória do Carroll, a estória da menina Alice, só que num lugar bem menos maravilhoso. O riso do gato de Alice. O riso insano.
Escolhi ignorar o som. Já tinha uma fonte, uma procedência, mesmo que pouco natural. Ficaria mais fácil fazer de conta que não existia, transformar aquilo num ruído incidental. Continuei misturando a pasta cinza com muita, muita calma. Queria um resultado absolutamente perfeito. A nova luz instalada no porão deixava ver tudo com grande clareza. Cada detalhe precisava estar fantástico, cada passo. Por isso tanto cuidado em misturar a massa, eliminar as eventuais bolhas de ar, deixar a aparência totalmente lisa, uniforme.
Quando estava absorto em minha tarefa, percebo que o riso não havia sumido. Mesmo com a música alta, mesmo com o barulho metálico produzido pelas ferramentas, o riso estava lá. Não havia como. Teria que trabalhar com a estranha risada ao fundo. E, pensando bem, seria mais um toque de requinte. O riso insano se transformou num ótimo contraponto para os olhos arregalados da mulher que agora estava no interior do buraco cavado com tanto cuidado. O azul dos olhos e o cinza da fita que cobria a boca, e o cinza do cimento que eu derramava sobre o corpo devagar, e os sons de pânico mudo que ela tentava emitir sem poder. Foi então que percebi que o riso... horror... o riso partia de mim.

Denise Ravizzoni escreve: http://sexoecrimecialtda.blogspot.com/ - http://e-blogue.com/blogs - http://www.3ammagazine.com/brasil - http://www.becodocrime.net/ - http://deniseravizzoni.blogspot.com/
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