As cabeças rolarão, não haverá piedade, clemência ou salvação. Contato e envio de textos: cabecascortadas@gmail.com

Melhor amigo.

Desde que eu era pequeno já sabia que era diferente de todas as outras crianças. Eu não tinha amigos. Praticamente nenhum. Eu tinha dificuldade para me comunicar com os outros. Elas não me entendiam. Às vezes eu mesmo não me entendia.
Eu tinha cerca de 8 anos quando fiquei sabendo que tinha um problema na cabeça, que me impedia de falar direito como toda pessoal normal. Havia ocorrido uma má formação cerebral. Um problema genético, disseram à minha mãe. Provavelmente em decorrência da dependência química dela.
Não sei quem é meu pai. Às vezes acho que nem ela sabe.
Lembro de ter conhecido Tony ainda bem pequeno, talvez por volta dos 5 ou 6 anos de idade. Tony viria a ser o meu melhor amigo. Ao Tony eu não precisava falar nada. Ele sabia o que eu estava pensando ou dizendo. Era como se conseguisse ler meus pensamentos. Podíamos passar horas brincando juntos, conversando, rindo. Ele era tudo que eu conhecia em termos de amizade. Tony tinha a mesma idade que eu.
Por não conseguir me comunicar direito, dificilmente conseguia fazer amizades na escola. Pelo contrário. Muitas vezes eu era ridicularizado pelas outras crianças. Chamavam-me de retardado. Todos zombavam de mim. Menos Tony.
Aos 10 anos minha mãe conseguiu uma vaga numa escola para crianças especiais. Isso foi logo depois do incidente com o garoto na outra escola. Roberto era seu nome. Roberto vivia me chamando de doente e retardado. Todos os dias. Todo momento. Tony já havia dito que eu deveria fazer alguma coisa. Não podia deixá-lo ficar me humilhando daquela forma. Tony queria que eu brigasse com ele. Mas eu não. Era contra brigar com alguém.
Aquela manhã: estávamos resolvendo exercícios que a professora havia nos passado, quando Roberto me chamou de retardado. Tony se enfureceu. Ficou louco. Pegou o lápis da minha mão e foi para cima do garoto. Enfiou o lápis no olho direito de Roberto. Um grito ecoou pela sala de aula. No mesmo instante o sangue jorrou de seu rosto. Suas mãos pequenas cobriam seus olhos. O lápis havia perfurado seu olho. O sangue escorria vermelho, entre seus dedos, descendo pelos seus braços.
Desde aquele dia fui proibido de ir para a escola normal e minha mãe conseguiu uma vaga num colégio especial para crianças com problemas como eu. Roberto perdeu a visão do olho direito. "Ele mereceu" dizia Tony. "Ele mereceu".
Eu e Tony crescemos juntos. Minha mãe estava cada vez mais distante de mim. Passava grande parte do dia deitada, descansando de suas noites de bebedeira e farra com seus amigos. Todas as noites. Às vezes eram vários os amigos de minha mãe que iam à nossa casa, conversar e beber com ela. Um dia, um desses seus amigos bateu nela. Seu rosto ficou muito machucado. Ela então não podia deixar nenhum outro amigo dela vir visitá-la por semanas. Durante esse período ela mudou muito comigo. Brigava comigo a toda hora e por qualquer motivo. Dizia que não havia dinheiro, nem comida. Acredito que eram os amigos de minha mãe que lhe davam algum dinheiro para nós sobrevivermos. Um dia bêbada, ela me deu uma surra. Eu apenas fiquei quieto. Fui chorar no quarto. Tony não gostou do que aconteceu. Ficou muito bravo. Muito mesmo. Disse-me que iria se vingar da minha mãe. "Aquela vadia" dizia, ele. "Aquela vadia miserável vai ver só". "Prostituta drogada, vai se arrepender de ter batido em você".
Eu tentava convencê-lo de que minha mãe não havia feito por mal. Que ela estava apenas chateada por causa dos seus amigos. Mas Tony estava louco. Nada podia fazê-lo mudar de idéia.
Eu e Tony passávamos o dia todo juntos. Íamos para a escola, brincávamos e ele dormia lá em casa, mesmo sem minha saber. Era nosso segredo. Ninguém podia saber, dizia Tony. Ele dizia que não deveríamos contar a ninguém que éramos amigos, porque senão, iriam tentar nos separar.
Aquele dia minha mãe estava na cozinha preparando o almoço. Eu tinha 12 anos. Era um dia chuvoso e frio. Tony entrou na cozinha em silêncio, minha mãe cantava a mesma música de sempre. Tony detestava aquela música. A facada que Tony deu nas costas da minha mãe acertou a altura do rim. Ela gritou e caiu no chão. Muito sangue começou a escorrer pelo chão da cozinha. Tony deu mais 3 facadas. Uma delas acertou seu peito, outra seu pescoço. Foi quando mais sangue escorreu do corpo da minha mãe. De onde eu estava podia ver seus olhos desesperados me olhando, sem saber o que estava acontecendo. Ela me olhava. E seus olhos me perguntavam o porquê daquilo. Mas Tony estava louco. Se eu tentasse impedi-lo ele me mataria também. Eu apenas fiquei ali, ao lado dela enquanto Tony continuava a esfaqueá-la. Ele estava louco.
Fui mandado para um tipo de orfanato.
Tony estava cada vez pior. Brigava com os outros internos. Dizia que era para me proteger. E por mais que eu lhe dissesse que não deveria fazer isso, nada adiantava. Ele estava enlouquecendo. Falou que se eu falasse algo para alguém sobre ele, me mataria.
Uma noite Tony saiu do quarto sem eu ver. Noite anterior havia discutido com a enfermeira que cuidava do orfanato. Tony pegou uma faca na cozinha e foi em direção ao quarto da enfermeira. Em silêncio entrou no quarto e a esfaqueou. Foram mais de 15 facadas. Dava para ouvir os gritos dela por todo o prédio. Tony estava fora de controle. Ele havia enlouquecido de vez. Não conseguia mais conversar com ele. Ele não me ouvia mais. Na verdade nunca ouviu.
Ele voltou para o quarto. Na porta, dava para ver o sorriso doentio em seu rosto. Seu corpo coberto de sangue. Seu rosto enlouquecido. A faca na mão.
Começamos a discutir. Durante todos esses anos fomos amigos. Tony era meu melhor amigo. Meu único amigo. Discutimos. Tentei tirar a faca de suas mãos. Ele estava enlouquecido. Doente. Ele dizia que ia acabar comigo. Estava louco.
Foi tudo muito rápido. Nós dois caímos no chão. E na queda a faca perfurou meu peito. Ele me olhou nos olhos. Seu semblante mudou. Por um momento pareceu estar assustado. Parecia não saber o que tinha feito. Parecia arrependido. Eu senti o sangue subindo pela garganta. Quente. Apenas olhava para Tony. Meu melhor amigo. Meu único amigo.
Com calma Tony tirou a faca do meu peito. Me olhou nos olhos por alguns momentos. Depois sorriu e continuou a me esfaquear.


* * *

A polícia não sabe explicar o que aconteceu. Sabe apenas que um garoto, com cerca de 13 anos foi encontrado com mais de 20 facadas. O mais impressionante é que sua mão estava presa a faca encravada em seu peito, como se ele próprio tivesse se esfaqueado. No seu rosto, um sorriso de satisfação. No quarto ao lado, a diretora do Manicômio infantil também foi encontrada morta e esfaqueada.
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