As cabeças rolarão, não haverá piedade, clemência ou salvação. Contato e envio de textos: cabecascortadas@gmail.com

Luz na noite (SOCORRO).

Quase madrugada. Naquela hora particular, depois da meia-noite e antes das duas da manhã, em que as ruas ficam muito, muito quietas. Uma quarta-feira. Aquele silêncio ainda leve, como se a noite estivesse se preparando para entrar no período R.E.M. do seu sono escuro. Era nessa rua que ela caminhava, ouvindo o som dos saltos da bota batendo na calçada úmida, escorregadia – chuva fina. Friozinho de começo de inverno. Gostava de noites assim. Era estranho que estivesse na rua a uma hora dessas, mas acontece que se atrasou. Simplesmente perdeu a noção do tempo na casa dos amigos. Sua casa era perto. Resolveu voltar caminhando. Achou que não seria perigoso. Dava-se bem com o silêncio das ruas vazias. Além do mais, o trecho era bem iluminado.

Enquanto andava e respirada o ar frio, observava as luzes piscantes do semáforo na esquina, lá adiante. Durante as madrugadas, nada de troca de cores. Nada de vermelho. Nada de verde. Só o amarelo em intervalo s curtos e regulares. Como um contador de tempo. Quase um retrato em branco e preto com o toque da luz em amarelo. E uma luz nova chega ao seu cenário de filme noir. Vindo em sentido contrário, umas três quadras adiante, uma mancha vermelha e dois faróis projetando uma luz forte nos pingos da chuva fina. Havia algo de estranho, o carro vinha rápido demais. Entrava na curva da esquina como se estivesse solto, flutuando na pista. Por um segundo, ficou apenas olhando, observando, acompanhando com olhos atentos a trajetória esquisita do automóvel. Só depois entendeu. O motorista havia perdido o controle. O carro estava capotando.

Um passo de recuo. Colou-se ao muro gelado bem rente à fachada de um prédio. Medo que o carro voasse em sua direção. Mas não foi isso o que aconteceu. A pista úmida se encarregou de jogar o carro contra um poste. O motorista foi projetado pelo vidro frontal. Ela ouve o som da freada brusca na entrada da curva, o som do carro capotando e batendo as ferragens no poste, o som dos vidros quebrados. Segundos que pareceram horas. E, logo depois, silêncio abissal. Foi se aproximando aos poucos da pessoa que havia atravessado os vidros. Era um homem. Um homem jovem. O rosto muito ensangüentado. Cacos de vidro por toda a parte. Ajoelha-se perto do homem. Ela está consciente. Deitado no asfalto frio, a malha clara começando a ficar molhada e já pintada de vermelho. Ela estende a mão e toca de leve a testa do homem, que diz, com muita dificuldade:

- Me ajuda...

Ela não responde. Não consegue. Fica ali, bem perto, observando os olhos escuros do homem, muito abertos, fitando-a com desespero, dor e ansiedade. Ela inclina um pouco a cabeça para o lado, chega mais perto para examinar melhor. Sente a respiração entrecortada do homem. Pensa que deve ter quebrado alguns dentes ou o osso do maxilar, já que o rosto estava estranhamente desfigurado. O homem tenta mover a mão em sua direção, mas não consegue. Tenta falar mais alguma coisa, mas da boca sai apenas um estranho gorgolejar e um jorro de sangue escuro, brilhante, espesso. Continua ali, fascinada, hipnotizada pela cena, as rodas do carro viradas para o ar da noite e ainda girando, o homem de blusa clara deitado no chão escuro. Ela sorri de leve e chega ainda mais perto, mais perto. Sente o hálito quente do homem na pista. Cheiro de álcool, ela pensa. Talvez tenha bebido muito. Mas isso não vinha ao caso. Ela tinha um espetáculo único, exclusivo, e estava aproveitando cada momento. O homem parece fazer grande esforço e consegue erguer um pouco a mão, toca em seu joelho, e meio que fala, meio que grunhe:

- Socorro.

Ela sorri novamente. Percebe o brilho dos olhos dele levemente alterados. Os braços se debatem por uns segundos para, logo depois, ficarem estáticos, imóveis. O olhar muda, fica vazio. Ela se aproxima novamente e sente que não há mais suspiro, gorgolejo, movimento respiratório, nada. Ele está morto. Só então ela enche os pulmões de ar, olha em volta e grita, com todas as suas forças:

- Por favor, alguém ajuda aqui!


Denise Ravizzoni escreve: http://sexoecrimecialtda.blogspot.com/ - http://e-blogue.com/blogs - http://www.3ammagazine.com/brasil - http://www.becodocrime.net/ - http://deniseravizzoni.blogspot.com/
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