As cabeças rolarão, não haverá piedade, clemência ou salvação. Contato e envio de textos: cabecascortadas@gmail.com

A voz ao lado.

Fazia um tempo que não ouvia a voz da senhora que mora ao lado com sua acompanhante. Nem mesmo sua tosse ou gemidos de dor, que de madrugada ela insistia e soltava. Ainda ontem vi sua acompanhante Julia entrar com pães e leite. Eu lhe pedia o isqueiro, ela me emprestava meio que a contragosto. Tentava puxar papo, mas ela sempre monossilábica. Ela é meio gordinha, nem alta e nem baixa, branca de cabelos claros, tem uns olhos castanhos claros e um olhar fixo, marcante, às vezes amedrontador, as bochechas rosadas e sempre que eu puxava assunto, ela corava mais.
Mas o fato da Dona Eulália não fazer mais nenhum barulho, isso estava martelando minha cabeça há vários dias. Porque a gente se acostuma com as coisas que nos irritam e chega um momento que até sentimos falta. Esta senhora, não deve ter mais de setenta anos, os filhos moram na Europa há bastante tempo e contrataram a Julia na última vez que estiveram aqui, isso faz uns dois anos. O sobrado de esquina é da família há muito tempo, tem ar dos prédios do Broklin que vemos nos filmes americanos.
Decidi espreitar a casa, e descobrir o que aconteceu com a pobre senhora. No fim de tarde fui saber como estava a Dona Lala, como é chamada pelos vizinhos. Para isso, joguei um lençol sobre o parapeito do primeiro andar, para dizer que foi o vento que fez voar e parar ali. Toquei a sineta da porta e esperei, a acompanhante veio atender nervosa, afinal não era costume receber visitas.
- Olá Julia! Tudo bem? Vim saber notícias de Dona Eulália, e também fazer uma visita.
- Infelizmente não será possível vê-la, pois ela dorme nesse momento.
- Que pena, mas aproveitando, gostaria de pegar um lençol que voou e parou no parapeito do primeiro andar.
- Pode deixar que eu pego para você - e foi fechando a porta; mas fui mais rápido, e coloquei o pé travando a porta e entrei.
- Não precisa se incomodar Julia, eu mesmo subo e pego, conheço bem a casa. Não se preocupe, não farei barulho.
Ela quis intervir, mas já era tarde, eu já subia as escadas e começava a sentir um mau cheiro. Percebi que ela fechava a porta e logo ouvi seus passos a me acompanhar. O aspecto do sobrado era de total desarrumação e abandono. Baratas correndo de um lado para o outro, cheguei a me assustar quando um camundongo passou por entre minhas pernas.
À medida que eu andava pelo corredor, o fedor aumentava. Alguma coisa apodrecia ali. E eu começava a sentir calafrios e enjôo. E depois, o fato de não saber onde a acompanhante estava me deixava mais ouriçado e nervoso. Fui até o parapeito e peguei o lençol que estava enganchado e fui até o quarto da Dona Lala, que é o da frente. Ao empurrar a porta, quase vomitei, o corpo dela estava em decomposição, ao redor dele, várias bolinhas brancas de naftalina, como se alguém quisesse esconder o cheiro fétido que rondava por ali. Cobri meu nariz com o lençol que eu segurava e antes mesmo de me virar, notei a presença da Julia. Senti uma pancada nas costas e outra em minha nuca, antes de perder a razão e provavelmente a vida, a ouvi dizendo: “Para você deixar de ser curioso.”