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O louco de Paris

Em seu camarim, Penélope ainda ouvia os aplausos abafados pelas paredes, pessoas surgiam à porta do recinto, acompanhadas de flores e presentes. De olhos marejados, a dançarina agradecia cada elogio que recebia com um largo sorriso no rosto. O tempo no relógio fora passando, e com ele, as pessoas que iam embora do teatro, até todo o local ficar vazio. Ali, apenas restavam duas faxineiras, recolhendo pipocas e sacos plásticos entre os bancos da platéia, Penélope e sua amiga Camille, que ainda tagarelavam distraidamente dentro do camarim, entre um cigarro e outro. Penélope olhou para o relógio, percebendo o tempo ter passado rápido. Com a ajuda de sua companheira, recolheu os presentes recebidos e alguns ramalhetes de flores.

Saíram do teatro, ambas carregando caixas de bombons, cartas e bilhetes, coisas que a dançarina fazia questão de guardar com carinho. Ventava forte nas desertas ruas de Paris, parcialmente iluminadas pela esplêndida lua cheia estampada no céu. Enquanto Camille comentava sobre o desempenho da amiga no espetáculo daquela noite, o vento uivava entre as árvores daquela extensa alameda. Penélope cobria o corpo com o longo casaco de pele, acendendo um novo cigarro. Ela havia notado o quanto o frio embelezava a face de Camille, deixando as maçãs de seu rosto levemente ruborizadas. A amiga de repente parou de falar, empacando no meio da calçada, de olhos vidrados em um bordel.

Colado na parede de tijolos, um grande cartaz anunciava um rosto atípico, e em cima da fotografia, “PROCURA-SE”, em letras vermelhas e garrafais. Camille colou o corpo nos braços da amiga, apontando o dedo em riste para o cartaz. Gaguejando, dizia ser aquele homem da foto um perigoso assassino, que havia feito de mais de dez parisienses suas vítimas. Penélope ficou a olhar a fotografia, os olhos fixos em cada letra do cartaz; não por medo, mas por mera curiosidade. Na verdade, Penélope não ouvia mais as notícias do rádio, a carreira artística havia sugado toda sua atenção, dedicando-se exclusivamente à dança e esquecendo-se do mundo exterior. Puxou a amiga para frente, retomando a caminhada, ainda intrigada com aquela tenebrosa foto.

Ambas, após alguns minutos a mais de caminhada, pararam em frente a um velho prédio. Camille olhou para a companheira, deslizando as mãos geladas pelos fartos cabelos negros da dançarina. Ela tirou uma das flores de um buquê que Penélope carregava nos braços, e colocou-a entre uma das orelhas dela. A dançarina aproximou os lábios nos de Camille e despediu-se com um longo beijo. Após alguns abraços e carícias, Penélope saiu do local, tendo tempo ainda de ver Camille entrar na porta do edifício e despedir-se com um sorriso.

Na verdade, não gostava de estar sozinha. Estava próxima de sua residência, mas o barulho das próprias sandálias batucando no chão causava-lhe certo arrepio. Adentrou em um beco mergulhado em escuridão, os postes apenas enfeitando o lugar. Jogou os objetos que carregava em cima de um banco de madeira, ajeitou o casaco de pele e sentou-se, tentando empilhar as caixas para melhor serem transportadas até sua casa. De repente, ouviu ruídos estranhos àquela noite. Virou o rosto, avistando, ao fundo, a silhueta de um homem de cartola. Percebeu que aquele estranho barulho que havia escutado vinham de dois cães amarrados em suas coleiras, presas pelas mãos do homem. O estranho não andava: parado como uma estátua funesta, tentava segurar os animais que pareciam ser bem mais fortes que seus braços. Foi quando um feixe de luz, proveniente da lua, clareou o rosto do homem, deixando à mostra um par de olhos cinzentos, uma boca de finos lábios e um pequenino óculos pairado no nariz adunco daquele velho de brancos cabelos como neve. Penélope, então, reconheceu o rosto daquele ser.

A boca abriu-se em um grito, um dos cães, com terrível agilidade, correra em direção à dançarina, que teve tempo apenas para lançar o próprio corpo contra o chão revestido de paralelepípedos. O animal avançou contra ela, mordendo-lhe uma das pernas com sua salivante bocarra. Aos gritos, ela sentia seu corpo sendo arrastado por uma força descomunal, suas mãos tentavam agarrar-se em qualquer objeto. O outro cão avançou a latir estridente, enquanto o outro mastigava com os dentes afiados o tornozelo de Penélope. Ela sentiu uma lufada de ar quente em seu pescoço, um hálito horrível entrou em suas narinas, um odor repugnante, de carne pobre. Um de seus braços fora puxado pela boca do segundo cão, que triturava a carne da dançarina com voracidade. A dor era terrível. Ela podia sentir sua pele descolar lentamente de sua carne, o sangue respingar no próprio rosto.

O velho da cartola aproximou-se da cena, os braços atrás das costas, e pacientemente sentou-se no banco de madeira, abrindo logo em seguida uma das caixas de chocolate que Penélope havia sido presenteada. Vendo aquele macabro espetáculo, mordia com suavidade o bombom que derretia em sua boca, enquanto a dançarina não mais gritava; entregue à morte, deixava o corpo ser dilacerado pelos dois abomináveis animais.

O velho, após comer todos os bombons daquela caixa, puxou para perto de si o par de cães, que tinham as bocas e focinhos empapados de sangue, pedaços de carne entre os dentes pontiagudos. Ele ergueu-se, olhou ainda os pedaços do corpo retalhado, espelhados pelo chão, e retirou-se do lugar, assoviando uma cantiga improvisada.

O sangue de Penélope pintava os paralelepípedos daquele beco de Paris, como um artista a dar vida à uma tela vazia.

Leandro escreve: http://caixaamarela.blogspot.com/, http://tropeceiemumaideia.blogspot.com/

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