As cabeças rolarão, não haverá piedade, clemência ou salvação. Contato e envio de textos: cabecascortadas@gmail.com

Vovó Imelda.

Vaca.
Era o que pensava Rogério enquanto, encostado em uma árvore, observava a casa que até seis anos atrás chamava de sua.
Viveu ali uns bons dez anos, ao lado de Irene, a vaca, e aqueles cachorros idiotas que ela chamava de bebês.
A casa agora estava com outra aparência: cerquinhas brancas, uma caixa de correios em forma de casinha, as paredes pintadas cor de rosa, um pomar perto da garagem, uma gaiola na varanda com um papagaio enfiado dentro.
Rogério não gostou, porque achou tudo muito careta.
Mas a verdade é que a decoração da nova moradora pouco interessava.
Ele queria era saber do seu diamante, enterrado no meio da cozinha.
Mais precisamente embaixo de um azulejo azul, levemente rachado, da esquerda para a direita de quem entra.
Foi ali que escondeu seu tesouro, 5 milhões de dólares, fruto do único assalto decente que fez na vida.
Era ladrão pé de chinelo, mas naquela joalheria metida a fina superou-se, e se deu bem.
Ou, pelo menos, era o que pensava quando enterrou sua fortuna logo ali.
A casa era de sua finada mãe e, depois de cumprir seus seis anos de cadeia, o plano era sair, pegar o que era seu por direito e viver feliz para sempre tomando cicuta e comendo azeitonas em um duplex na avenida central.
Mas aquela vaca da Irene, a cretina que dormiu ao seu lado durante 15 anos e lhe jurou fidelidade absoluta, vendeu a maldita casa e se mandou com um mexicano de bigode cantador de bolero.
Ela ter ido embora era até bom.
Uma chatinha, a Irene, sem contar que andou engordando nos últimos anos.
Podia fugir com o mexicano, e graças a Deus levou consigo aqueles cachorros enjoados, mas não precisava vender a casa!
Não a casa que guarda um diamante de 5 milhões de dólares embaixo do azulejo da cozinha!
Fez bem quando decidiu não lhe contar que o assalto, ao contrário do que parecia, havia sido um sucesso.
Senão agora quem estaria feliz tomando cicuta e comendo azeitonas em um duplex na avenida central seria ela e seu amante bigodudo.
Respirou fundo.
Antes de alimentar sua fúria contra Irene, precisava descobrir quem era o novo dono da casa, e como faria para pegar de volta o que era seu.
- A César o que é de César.
Foi o que Rogério disse, um pouco antes de acender um cigarro.
Então a porta da frente se abriu, e de lá saiu uma velhinha de cabelos brancos e vestido azul. Caminhava devagar e delicadamente, acenando para todo mundo que encontrava. Parecia com dificuldade para carregar uma sacola toda florida, e Rogério não perdeu tempo:
- Ajuda, senhora?
A velha abriu um sorriso gentil:
- Oh, sim, obrigada meu filho.
E lhe alcançou a sacola que, até mesmo para ele, pareceu pesada.
- Vou até o orfanato, na rua ali de baixo. São biscoitos e tortas que eu levo para as criancinhas, toda semana.
- Que legal – respondeu, enquanto bocejava.
Ela lhe estendeu a mão.
- Imelda, prazer.
- O prazer é todo meu, senhora. Rogério, ao seu dispor.
E, devagar, os dois foram descendo a ladeira.
Na volta do orfanato, Rogério já estava bem mais sossegado.
Conseguir entrar na casa seria mais fácil do que poderia imaginar.
Vovó Imelda era muito amigável. Foi logo contando que morava sozinha, e não tinha filhos, apenas um papagaio chamado Alfredo. E que gostava de fazer bolos e doces, e cuidar de hortas, e Rogério logo deduziu que a velhota só podia ser carente.
Perfeito.
Então ofereceu-se para levar os aperitivos para a criançada toda a semana.
Depois se dispôs a ajudá-la também com a horta.
Logo, foi convidado para tomar uma xícara de chá, e descobriu com alegria que os azulejos da cozinha continuavam os mesmos.
Quando viu, já aparecia para o café da manhã, o almoço e, algumas vezes, até para o jantar, sempre elogiando exageradamente seu tempero.
Em um mês, era o queridinho da vovó Imelda.
Inventou para a velha um monte de mentiras: disse que era estudante, e dividia um apartamento com alguns colegas de faculdade, há poucas quadras dali. Disse que estava procurando um estágio, mas que era difícil para quem estava começando. Disse que seu sonho era trabalhar e encontrar um grande e verdadeiro amor, e vovó Imelda achou tudo isso muito fofo.
Um dia, enquanto comiam um bolo de cenoura na cozinha, vovó pediu licença e foi até seu escritório atender uma ligação.
Era a oportunidade que Rogério esperava.
Até porque não agüentava mais a conversa mole e açucarada de Imelda.
Só suportou tanto tempo porque a velha cozinhava muito bem, mas até seus quitutes andavam lhe fazendo mal, e uma dor de barriga terrível lhe atacava quase diariamente.
Sem pensar, largou o bolo no prato, contou os azulejos, encontrou o azul rachado, retirou-o e, ao fundo de um buraco de mais ou menos 20 centímetros, dentro de um pacote de veludo vermelho, deparou-se com seu diamante.
Sorriu, quase emocionado, e já ia colocando a preciosidade no bolso do casaco quando sentiu um estrondo seco, e algo quente escorrendo pela sua nuca.
Levou a mão ao pescoço e a trouxe de volta, encharcada de sangue.
Ainda teve tempo de ver vovó Imelda parada na porta da cozinha, surpreendentemente boa de alvo, apontando-lhe uma pistola:
- Desculpe, meu filho, mas na minha pedra ninguém meche mais.
Rogério caiu morto, de bruços, a pedra firme em sua mão.
Imelda suspirou, levemente entediada, e com as dificuldades habituais que seus 73 anos ofereciam, caminhou até o corpo, ajoelhou-se e arrancou o diamante da mão do defunto.
O mesmo diamante que lhe foi roubado seis anos atrás, enquanto era restaurado em uma joalheria fina.
E pior: roubado por uns ladrões pés de chinelo, que acabaram capturados algumas horas depois e sequer saberiam apreciar devidamente tão rara jóia.
Todas as jóias furtadas durante o assalto foram recuperadas.
Todas, menos o diamante.
O seu querido diamante.
Imelda prometeu que não morreria antes de recuperar seu tesouro.
Não foi difícil.
Ao contrário do que o palerma do Rogério pensava, Irene sabia sim da existência do diamante.
O que ela não sabia era que aquela pedra branca do tamanho de uma uva valia 5 milhões de dólares – o que facilitou muito a vida de vovó, que acabou comprando de volta o diamante por menos de 200 mil.
Ter dinheiro, cabelos brancos e boas fontes facilitam muito a vida.
Assim, quando Rogério apareceu na sua frente, há algumas semanas atrás, oferecendo-se para carregar sacolas com donativos, vovó Imelda sacou de cara quem ele realmente era.
O conhecia pelas fotos, espalhadas por toda a casa - casa esta que também comprou de Irene, a preço de bananas.
Imelda ficou porque queria conhecer o sujeito que lhe tomou tão adorado bem, e sabia que a primeira coisa que o desgraçado faria ao sair da cadeia era voltar para casa.
E quando ele voltasse, ela estaria lá, o esperando.
Aquele assalto não ficaria por isso mesmo, mas de jeito nenhum!
Afinal passou por um processo muito traumático com o roubo de seu diamante de estimação. Ganhou rugas, uma gastrite, cabelos brancos. Até voltou a fumar, imagine só!
Seis míseros anos de cadeia para punir ato tão sórdido contra sua dignidade eram irrisórios.
Por isso os chás e os bolos servidos para Rogério vinham sempre temperados com farelos de vidro.
Nada exagerado.
O plano era matá-lo devagar, mas neste ponto o bandido até que se deu bem.
Sua morte acabou sendo bem mais rápida que a planejada por vovó.
Imelda olhou outra vez para o defunto, com nojo.
Finalmente poderia deixar aquela casa caindo as pedaços, e aquele bairro suburbano, e aquele orfanato cheio de fedelhos piolhentos e famintos, e aquele papel de vovozinha-querida-incapaz-de-fazer-mal-para-uma-mosca.
Não queria de jeito nenhum passar seus últimos anos fazendo bolos e doces e cuidando de uma horta, muito menos em um lugar com cerquinhas brancas, uma caixa de correios em forma de casinha, paredes pintadas cor de rosa, pomar perto da garagem.
Chegava a ter ódio de Alfredo, o maldito papagaio.
Queria mais era viver feliz para sempre tomando cicuta e comendo azeitonas em um duplex na avenida central.
E foi o que fez, antes de desovar o corpo de Rogério no aterro de lixo da cidade.
- A César o que é de César.
Foi o que ela disse, um pouco antes de acender um cigarro e ir embora.

Jana Lauxen escreve:
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