As cabeças rolarão, não haverá piedade, clemência ou salvação. Contato e envio de textos: cabecascortadas@gmail.com

Bom apetite

Desculpem-me os vegetarianos. Mas não há nada mais saboroso que a carne. De preferência mal passada, com bastante sangue. Quente e macia. Nada contra os legumes, as frutas ou as verduras. Pelo contrário, são extremamente necessárias para suprir todas as necessidades vitamínicas e minerais do organismo. Mas como carne não há nada igual. Fonte rica de proteína. Adoro comer carne. Humana então... que delícia.
Lembro como se fosse hoje a primeira vez que comi carne humana. Foi há cerca de 10 anos atrás. Era uma garotinha tão linda. Tão doce. Consegui que entrasse no carro com a promessa de lhe comprar doces. Devia ter cerca de 9 ou 10 anos. Cabelos longos, cheios de tranças. Voltava da escola. Eu a estrangulei, cortei em pedaços e me deliciei a semana toda. Comi em forma de bifes. Fiz ensopado com batatas, cenouras, tomate e cebola. Fiz uma torta e até mesmo um strogonoff com champignons e batata palha. O coração eu assei e fiz com um delicioso molho madeira, que fiz com o próprio sangue da garotinha. Juntei o sangue que escorria dela enquanto eu a esquartejava na cozinha da minha casa.
Já comi carne de adultos. Mas as de crianças são mais gostosas. As de adultos ficam com um certo cheiro. As de crianças são mais puras, mais limpas. Talvez seja por conta da alimentação e da falta de hábitos ruins, como fumar ou tomar bebidas alcoólicas. Além disso, a carne é mais macia. Tipo um babybeef. Uma delícia.
Sei que vão me recriminar por comer carne humana. Mas por favor, não sejamos populistas ou dramáticos. O fato de vocês acharem um absurdo eu comer carne humana é meramente cultural. Alguns países se alimentam de forma muito pior, muito mais estranha. Gafanhoto, cachorro, escorpiões, entre outras coisas que simplesmente desconhecemos. E eu como carne humana. Isso me torna melhor ou pior que alguém que se alimenta de larvas, de cérebros de macaco ou que algo parecido? Entendo. Eu assassino pessoas indefesas para me alimentar. Certo. Mas antes que se inicie um debate sem fim, é bom lembrarmos que todas as espécies vivas que se conhecem praticam algum tipo de “assassinato”, se essa for à palavra mais adequada para caracterizar o ato de sobrevivência animal.
Animais selvagens matam uns aos outros. Plantas tentam ocupar o espaço das outras. Tentam sufocar outras até que as mais fracas desapareçam. Isso é natural para eles, e até natural para nós. Mas isso é normal. Aprendemos desde cedo que o Leão devora a Gazela, que o Gato mata o Rato, e não achamos nada disso errado. Aprendemos isso desde pequenos. Programas de televisão mostram isso diariamente. Estamos acostumados. Já faz parte da nossa cultura. Não vemos nada de errado nisso. Não me lembro de ninguém ter criticado o leão por ter comido uma zebra, quem sabe chamar de assassino o falcão, que com sua visão certeira, se atira do céu para pegar na terra, pequenos roedores, para se alimentar e também alimentar seus filhotes. “Não faça isso seu Falcão! O senhor está matando os pobres ratinhos.” Nunca vi isso acontecer.
Então o que me torna diferente das outras espécies? Sejamos lógicos. Isso é apenas um tabu. Não posso comer carne humana por que a religião não permite, os costumes morais não deixam, seus paradigmas existenciais não acham correto. E além do fato de eu comer a carne humana, que na minha opinião é apenas um fator gastronômico, ainda existe o assassinato propriamente dito.
Pelo que sei morrem milhares de pessoas todos os dias, assassinadas por milhares de motivos banais, muitos deles tão ou pior moralmente que os meus. O fato de eu matar para comer é simplesmente o fato de não poder comprar carne humana num supermercado. Se isso fosse possível eu não mataria ninguém para comer.
Não que eu não goste de matar.
Não há sensação mais incrível que caçar e matar sua própria presa. Isso me dá uma sensação de força, de poder. Algo que me transmite o verdadeiro extinto animal. Adoro sentir essa sensação de liberdade, de retorno aos meus antepassados pré-históricos. Ao aquilo que parece ser o meu destino. Talvez, e aí não tenho certeza, é apenas um ponto de vista pessoal, acho até que isso é genético.
Além disso, o Canibalismo não é algo tão absurdo assim. Na história das civilizações podemos encontrar vários exemplos disso. Houve vários povos e civilização que praticaram o Canibalismo. Algumas civilizações se alimentavam da carne de seus inimigos em busca de obter seu espírito, sua força. Índios e povos americanos comiam carne humana naturalmente. Foram os colonizadores que de certa forma mudaram isso. Quando os colonizadores encontraram esses povos acharam isso uma selvageria. Um absurdo. Mudaram seus costumes assim como suas religiões. Decretou-se assim, o fim de uma tradição.
Por isso não acho tão horrível assim comer carne humana. Tenho certeza que você fala isso, porque nunca comeu. Tipo cebola, quiabo ou berinjela. “Eca! Não como isso.” “Mas já experimentou?” “Não e nem quero!”. Bom, se nunca comeu então não sabe que gosto tem. E nenhum alimento fica ruim quando é feito com um bom tempero, com uma boa apresentação.
Mas como estava dizendo. Eu particularmente gosto de carne de criança. São mais saborosas. Ontem mesmo matei uma garota. Tão meiguinha, com uns olhinhos tão doces, tão verdes que até brilhavam enquanto eu arrancava a pele toda do seu corpo. Essa é a parte chata. Limpar o corpo. Cortar as partes boas de carne, desossar, tirar as entranhas, os órgãos. A cabeça quase não se usa. Apenas o cérebro. Coração, rim e fígado dão bons pratos ou acompanhamentos. Mãos e pés não valem a pena tentar aproveitar. Muito osso para pouca carne. Melhor descartar ou deixar para o cachorro roer. A carne boa está nas coxas, nas nádegas. São as melhores partes. As costelas são boas com batatas ou mesmo assadas na brasa, no churrasco. A boa costela tem segredo, nada de sal grosso. Sal refinado mesmo, e deixar no alto da churrasqueira para assar por bastante tempo, enrolada em papel celofane ou alumínio. Delícia.
Tem que se tomar cuidado com crianças gordinhas. Por causa do colesterol, claro. Costumam ter uma quantidade grande de gordura. De vez em quando ainda vai, mas não pode abusar. Com o cérebro costumo fazer bolinhos fritos, tipo almôndegas. Bem temperadas, com páprica e um pouco de pimenta do reino, fica uma delícia. Frite no óleo bem quente para não encharcar muito. Faça o molho com o sangue e um pouco de vinho tinto seco. Você pode acompanhar com polenta ou purê de batatas. Fica divino.
Bom apetite!

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Um anjo Redentor.

Sirenes ligadas. Homens, mulheres e crianças chorando, gemendo de dor. Um cheiro forte de éter. Em um hospital vê-se o que quer e o que não quer. Se ao menos houvesse muitos médicos para atendê-los... Não, não havia.
Adametropos trabalhava há quase vinte anos como enfermeiro. Muitos pacientes já haviam sido cuidados por ele. Suas mãos precisas efetuaram uma centena de curativos, aplicaram injeções mais ainda. Não era casado, não tinha filhos. Quase uma vida inteira dedicada a pessoas desconhecidas.
Sirenes ligadas, gente chorando... Já estava acostumado com isso. Essa profissão não é para qualquer um. É preciso gostar muito de ajudar as pessoas. E não se importar em ver sangue.
Em alguns dias os corredores ficavam até vazios, mas hoje... Haviam macas espalhadas, alguns pacientes que estavam em pé, outros sentados em cadeiras mal conservadas e tomando soro.
Adametropos cuidava de uma senhora, paciente terminal de câncer. Antigamente não se podia falar nem no nome dessa doença. Falavam “aquela doença ruim”. Estava quase gritando de dor. Seu corpo magro se contorcia na cama, desarrumando os lençóis que a cobriam. Não havia nenhum parente com ela. Acontece às vezes. Algumas pessoas são abandonadas pela família e isso é muito triste.
– Ah... Está doendo! Meu Deus me ajuda! – disse Dona Diva, com os olhos cheios de lágrimas, voltados para o enfermeiro que entrava no quarto agora.
– Calma Dona Diva... – disse ele com sua voz grave. Era chamado de locutor de cabaré por disso.
– Me ajuda moço... – disse ela quase sem forças.
– Isso vai deixar a senhora melhor... – disse ele aplicando uma injeção na garrafa de soro. Quase que instantaneamente a mulher foi se aquietando até dormir. Seu rosto ainda estava molhado de lágrimas e Adametropos enxugou-as com as mãos.
Seus olhos marejaram. Era difícil se comover com os pacientes. Na verdade só havia acontecido nos seus primeiros plantões. Talvez fosse porque ela lembrava sua mãe. Ah sua mãe! Que saudades! Havia partido há tanto tempo... Não pôde ajudar. Morreu de repente e ninguém nunca soube o que havia sido. Por isso decidiu ser enfermeiro. Precisava ajudar os outros. Enquanto trocava de roupa pensava em como ajudaria mais pessoas, fora de seus plantões.
Foi para casa, tomou um banho e deitou-se um bocado, estava exausto. Quando acordou eram quase três horas da tarde. Levantou, lavou o rosto e comeu alguma coisa, assistindo televisão.
“Em pesquisa recentemente divulgada pelo governo, houve um aumento de trinta por cento da população de rua...”. – disse o jornalista. Sim! Os mendigos precisavam de ajuda. Aliás, já havia atendido a muitos no hospital.
Levou o prato até a pia e começou a destampar as panelas. Arrumou alguns pratos, tapando com outros e amarrando com panos de prato. Foi ter com os mendigos, lembrava que perto do hospital tinha visto alguns. A pesquisa do governo estava certa. Devia haver umas duas famílias inteiras por lá e muitas crianças. O que trouxe provavelmente não ia dar. Mas os mendigos dividiram tudo e quase que sobra. Emocionou-se novamente. Talvez fosse a primeira refeição deles e comeram como se fosse a última. Voltaria lá mais tarde.
No outro dia, ao chegar ao hospital recebeu a notícia. Dona Diva tinha partido, ainda pela manhã de ontem. Era apenas mais uma. Trocou de roupa e foi passando no leito de cada um. No setor de queimados, havia uns dez pacientes. Atendeu primeiro à Paloma, uma menininha de cinco anos. Sua mãe estava aquecendo o leite no fogão e deixou distraidamente a alça do canecão voltada para fora. A menina puxou-o derramado a bebida no rosto e no peito. Estava praticamente desfigurada.
– Bom dia Palominha... – disse ele se aproximando.
– Bom dia Sr. Tropis! – disse ela, que sorria, mesmo na dor.
– Então, como é que foi a noite?
– Eu senti um pouco de frio. Mas aí, minha mãe me cobriu e eu suei muito. – disse a menina arregalando um dos olhos. O outro, tinha a pele retorcida pela queimadura. A mãe estava sentada ao lado tentando segurar o choro, para que a menina não visse. Não pôde, e saiu para chorar no corredor.
– Vou te dar um remédio para você melhorar, está bem? – disse o locutor de caba-ré.
– Cadê mamãe? – perguntou a menina voltando-se para a porta.
– Deve ter ido ao banheiro... – disse ele com jeito.
Deu o remédio à menina e partiu para os outros pacientes. Saiu dali e foi para a ortopedia. Também estava lotado. Ali havia acidentes de todos os tipos. Um homem havia caído da laje. Três mulheres haviam sido atropeladas no ponto de ônibus. Um rapaz havia batido de carro e tinha sorte de estar ali. Sua namorada estava sem o cinto de segurança e na pancada tinha sido arremessada pelo pára brisa dianteiro, indo parar a uns cinco metros do sinistro. Ele talvez ficasse paraplégico.
– Hei Adametropos! – Teu time é muito ruim mesmo, hein? – disse Sr. Carlinhos, um senhor de uns setenta anos. Tinha quebrado a bacia quando escorregou no banheiro de casa. Viúvo, morava com o filho.
– Ruim é o seu! – redargüiu o enfermeiro.
– Esse ano vou ter o prazer de ver o Vasco cair para a segunda divisão! – disse o velho com um radinho de pilha sobre o colo.
– E o seu está muito bem, não é? – disse ele trocando o soro do velho.
– O Fluminense? Eu nem vejo vocês pelo retrovisor! Por que é que você não fica em casa todo dia? Assim você evita as chacotas e eu sou cuidado só por aquela enfermeira gostosa que estava aqui ontem...
– A Neide? Da fruta que o senhor gosta ela come até o caroço! – disse ele atendendo outros pacientes.
– Isso é porque ela não me conheceu ainda. Deixa comigo que eu dou um jeito nela!
E foi assim por todo o dia. Alguns choravam, outros faziam piada. Nada demais até as duas da madrugada. Chegou um rapaz que havia batido de moto. Estava todo ensangüentado, dando golfadas de sangue. No lugar da perna direita tinha um monte de carne retorcido com alguns cacos de osso. Foi direto para o CTI, mas já era tarde, seu coração já estava parado. Já estava quase amanhecendo, mas de lá não se podia ouvir o canto dos pássaros. Só gemidos e lágrimas.
Outro plantão exaustivo. Saiu do hospital e foi à padaria do outro lado da rua fazer seu desjejum. Alguns enfermeiros e parentes de internados faziam suas refeições ali, e levavam guloseimas escondido para os pacientes. Adametropos adoçava seu café com leite, enquanto os outros prestavam atenção no noticiário. O jornalista anunciava em tom austero informações sobre uma chacina.
“A polícia ainda investiga a chacina ocorrida na madrugada de segunda feira, em uma das ruas do centro da cidade. Foram dezoito mortos, entre homens, mulheres e crianças. Uma mulher, que não quis ser identificada, disse que foram muitos disparos de arma de fogo, por volta de uma hora da manhã. Ouviu muitos passos, mas não soube se eram dos assassinos ou dos mendigos que corriam desesperados.”
– Que absurdo! – disse a moça que limpava o balcão.
– Fiquei sabendo que foi aqui pertinho... – disse um cliente.
– Que Deus tenha piedade dessas almas... – disse Adametropos com lágrimas nos olhos. Estava sensível a este tipo de coisas nos últimos tempos.
A conversa ali na padaria girou em torno deste assunto. As mortes, a insegurança da população. Os hospitais lotados, a falta de preocupação do governo com o básico, saú-de, segurança e educação. A sociedade estava à beira do caos.
O enfermeiro Adametropos saiu da padaria e caminhou até o ponto de ônibus. A rua onde aconteceu a chacina ficava no caminho deste. Passou em frente e ficou olhando na entrada do beco. Havia marcas de tiro nas paredes. A imagem das pessoas correndo lhe veio à cabeça. Lembrou-se de quando se fartavam com a comida que havia trago. Aquela havia sido a última refeição deles mesmo...
Chegou à porta de casa, tirou os sapatos, batendo um no outro para tirar a poeira. Entrou, abriu a camisa e foi pegar uma cerveja gelada. Era um dia quente. Foi para a sala e ligou a televisão. Sentou-se no sofá, esticou os pés na mesa de centro e degustou a bebida. Deixou escorrer algumas gotas pelo queixo, indo pingar em seu peito, cheio de cabelos brancos. Estava ficando velho.
Todos os canais falavam sobre o acontecido. Não adiantava mudar. No meio de programas de culinária abriam um espaço só para falar do assunto. Eles não demorariam a encontrar o culpado, ele sabia.
Em um dos canais, falavam sobre o hospital em que ele trabalhava.
“No Hospital Nossa Senhora da Boa Morte, está sendo investigado uma série de mortes. Muitos pacientes morreram mesmo tendo uma melhora no quadro. A senhora Mariluce Tavares, mãe de uma paciente, diz que sua filha estava bem, mas começou a se sentir mal depois de ter ingerido um comprimido, dado por um enfermeiro. – Eu tive que sair, por estar me sentido mal e quando voltei o enfermeiro tinha medicado minha filha. Ela teve um pouco de febre na noite anterior, mas não era nada demais. Em algumas horas ela morreu. Foi horrível. Nada vai trazer minha filha de volta! – disse a mulher aos prantos. A polícia investiga o envolvimento do enfermeiro nas mortes...”.
Ouviu o som de pisadas fortes na entrada de sua casa. Bateram a porta com força. Eram eles.
– Adametropos Ribeiro! Abra a porta, é a polícia! – gritaram. Haviam encontrado-o.
Adametropos estava farto de tanta aflição, tanta dor. Não resistiu a anos assistindo aquilo como coadjuvante. Embora curassem alguns, outros chegavam, com os mesmos sintomas, as mesmas doenças. O mundo era uma fábrica de doentes, acidentados, famintos e desesperados em linha de produção. Não, ele precisava fazer algo. E fez. Salvou dezenas de almas de tanto sofrimento, tanta angústia. Para onde foram, não teriam fome nem sede, nem dor. Uma terra onde corre leite e mel.
Os policiais chutaram a porta com mais força. Adametropos pegou o revólver que estava sobre a mesa de centro, tomou um último gole de sua cerveja e abriu a boca, pondo o revólver dentro. Apertou o gatilho no momento em que conseguiram arrombar a porta. Encontraram o corpo caído sobre o sofá e o sangue que escorria molhando sua roupa branca.
Mas vejam só. Nem todos que vestem branco são anjos...

George dos Santos Pacheco escreve: http://revistapacheco.blogspot.com/ - http://www.esquinadoescritor.com.br/beco_do_crime/

Contato com o autor: pacheconetuno@oi.com.br

A dama da feiúra.

Não existia nada mais medonho que olhar para ela. Sua feiúra era tamanha que nem mesmo ela conseguia se olhar no espelho, sua casa já não os possuía. Mas ela insistia em ter prazer, em deleitar-se em camas diversas e ter em seus braços homens que a fizesse esquecer-se do quanto o feio tinha lhe sido exposto e exagerado.
Se fisicamente nada lhe parecia belo, sua voz compensava. De tom macio sem precedentes, seria capaz de mexer com os pensamentos de um padre só em dizer um ‘boa noite’. E era dona de uma lábia que venderia facilmente ouro em pó ou areia no deserto. Era assim que ela conquistava seus parceiros, primeiro em conversas pela internet, depois pelo telefone.
A dama era capaz de entorpecer literalmente com a beleza de sua voz e com as palavras certas na hora certa. Mas ao chegar o momento, um desejo seu tinha de ser realizado, não queria luz, não queria ser vista. Com medo de uma trapaça de algum parceiro, ela sempre chegava vem vestida e com uma echarpe de seda cobrindo-lhe o rosto. Como sempre bebia junto ao homem que estivesse em sua companhia, manipulava algum relaxante junto à bebida.
Usava todas as artimanhas da sedução para relaxar o objeto de seu desejo. Sempre havia dado certo, sempre tinha conseguido saciar-se de sexo. Mas naquele dia o cara corpulento não amolecia ao tomar o conhaque com relaxante. Por mais que ela lhe desse mais álcool batizado, nada fazia com que o homem ficasse da forma que ela sentisse tranqüila.
De súbito o homem a agarrou e tirou a seda que lhe cobria o rosto. Abismado com a feiúra da mulher, deu-lhe um bufete que ela rodou e caiu sobre a cama. O ódio tomou-lhe a cabeça. Ela pegou a bolsa sobre a cama e sacou um estilete. Enquanto o homem lhe chamava de demônio, ela, num salto caiu sobre ele e aplicou-lhe o estilete repetidamente no pescoço. Os olhos vermelhos dele olhavam para aquele mostro que agora lhe fazia sangrar. Ainda assim, ela usou das mãos do homem para se masturbar e sentir prazer. Afinal, era para isso que ela estava ali, independente de ele estar vivo ou não.

Plínio Gomes escreve: http://zingador.blogspot.com/, http://pliniogomes.blogspot.com/, http://blogcabecascortadas.blogspot.com/ e http://universoderetalhos.blogspot.com/
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Jornais no parque.

Um homem precisa de inspiração sempre. Garoava e fazia muito frio. A fumaça do cigarro, do café e meu hálito quente misturavam-se no ar. O apartamento estava repleto de uma energia boreal. A serração e a chuva fina que o céu urinava davam um toque funesto que desesperançava meu cão interior. Vesti o casaco de couro, o jeans rasgado e o velho coturno de sempre. Respirei fundo, o ar frio abriu meu pulmão. Tive a impressão de que as gotículas de umidade que adentravam pelas minhas ventas congelavam dentro de meus alvéolos perdurados pela nicotina. A rua me recebeu com um vento insolente, cruzava enquanto raspava minha careca sem educação alguma. Tanto que a porta bateu e o vidro quebrou. Atravessei a praçinha sem graça e tomei o rumo do grande parque central da cidade.
Pelo caminho, a chuva fina desenhava riscos aguados em meu casaco ralado. O crivo respingado logo perdeu o filtro, quebrou entre meus dedos melecados da vida. Sentia que a escuridão me abençoava sem medo. As folhas no chão estavam amareladas, desidratadas pelo corte da seiva, pareciam comigo, sugadas. Meu espírito fantasma vagava devagar. Meus olhos murchos encaravam a paisagem com tudo que ela me dava. Os carros passavam como tartarugas no meio de uma grande confusão. Invadi o espaço mínimo entre eles e atravessei a avenida para chegar até o passeio. As pessoas estavam com seus guarda-chuvas nas mãos, encarangadas, enrugadas como o couro de um lagarto. Eu até sentiria pena, se pudesse.
Avistei a copa das árvores por entre os prédios, a imagem riscava um fundo verde escuro. Olhava o caminho por debaixo das marquises embolado como as ruas atravancadas de automóveis. Andava afastado dessa linha imaginária que a maioria preferia e sentia calor, tomando pingos na cara fechada. A ternura não me cai bem. Cheguei e fui até o banheiro. As merdas no chão e os rabiscos nas portas e nas paredes me deram de bel ver. Saquei o pau e urinei. Ah, que alívio. Subia fumaça do mictório congelado, parecia vapor.
Ganhei a porta e avistei o chafariz vazio de água e cheio de folhas de jornais desmontados e abandonados. Olhei o banco azul todo chuviscado e rumei para ele. Sentei e acendi um cigarro. Fiquei sentindo o vento que balançava os galhos e minhas idéias. Os caminhos por entre o parque estavam vazios como meu coração. A queda livre da temperatura fazia o termômetro eletrônico da calçada instável. A cada grau despencado o dia ficava mais interessante. Aos poucos o vento ganhava força. Como um guerreiro incansável, apoiado pela garoa constante que riscava a paisagem de fiapos brancos em fundos coloridos, de acordo com a parede mofada de cada construção.
Notei a presença do diabo. As folhas de jornais passaram a voar em bando, lentamente para o alto. Giravam em ciranda de criança triste como jamais vi. Fisgado pela imagem, afanei mais um crivo do maço amassado em meu bolso. Traguei e soltei um feixe vaporoso, fazia uma cor bonita em frente do preto e branco dos jornais endiabrados que bailavam antes do fundo que a cidade revelava. Era uma dança infinitamente tocante. Os jornais decolavam a partir do centro do chafariz como urubus, alguns partiam para longe, outros pousavam na galhada das árvores e mexiam com a força do vento num vai e vem sonolento.
O tempo fechou ainda mais. Os jornais ganharam ainda mais altura, por causa do vento que aumentava de velocidade a cada segundo. O bando tornava-se cada vez mais numeroso, estava abandonado por Deus e a mercê dos urubus que imaginava. Chegou o momento de o meu cigarro desfalecer, assim que joguei a butuca, a danada correu até a beira do esverdeado cisne de cimento que não cuspia água para encher o chafariz. Minhas meninas encontraram um sapato de camurça em tom amarelado, rebocado de barro na sola. Fiquei firme. Alguns minutos depois, já não havia mais jornais dentro do chafariz, pois todos eles ganharam vôo. Era o diabo espantando os sombrios. Foi quando mirei o centro do chafariz e encontrei o menino. Sangrava na garganta e os olhos dele permaneciam perdidos no sem fim, tão frio quanto o dia e sem nenhuma manchete sobre ele. Levantei sem reação em meu semblante, era hora de voltar e pintar um pouco.
Contato com o autor: afoborio@gmail.com

Um caso de amor?

I

Que vila pequena! Era somente uma rua, de terra, com algumas casas ao largo e ao final uma praça, sem igreja ao fundo. Tudo meio empoeirado e avermelhado, cor da terra. Poucas árvores e só. O tempo não passava devagar por lá, ele não passava. Os poucos habitantes trabalhavam nas grandes estâncias que ficavam ao redor. Saíam cedo e voltavam tarde. No único estabelecimento comercial, somente charque e cachaça. Da ruim. Algum enlatado vencido e arroz a granel. Pedaços de pano e fitas e fumo em corda. Mais nada.
Na soleira, sentada olhando o nada, uma menina de seus dezoito anos, por aí, vestida com uma saia poída e curta, mostrando as coxas roliças e morenas e uma blusa, que deixava os seios livres, de tecido quase transparente. Parecia esperar algo, apesar de não haver o que esperar. Nada passava, nada acontecia. Somente os dias, que iam acavalado-se uns sobre os outros, deixando a todos mais perto da morte. Ela era a caçula da vila. Nem nascimentos havia mais. Óbitos nem tanto. Há poucos dias mesmo, enterraram um morador que foi encontrado sentado numa cadeira de balanço, já em estado avançado de decomposição. Segurava nas mãos um bilhete, escrito pela ex-mulher, datado de cerca de dez anos antes, onde ela dizia que voltaria. Somente esperava juntar algum dinheiro e voltaria. Este era o futuro de quem espera algo ou alguém neste lugar: não só a morte, destino de todos, mas a solidão. Pois a menina, talvez por intuição, apesar de parecer, não esperava nada. Nem ninguém. Possuía na rotina invariável um aliado contra os dias que vinham também sempre iguais. Levantava quando os raios do sol entravam no casebre e seus pais saíam, usava uma bacia, que deixava preparada à tardinha, com água da sanga para se lavar, amassava o pão, assava, comia, sentava na soleira. Depois acendia o fogo, fazia o arroz com charque, comia, sentava na soleira. Antes da noite buscava a água e a escassa lenha, requentava o arroz e jantava com os pais, invariavelmente em um silêncio soturno. Uma que outra vez, algum vizinho pedia um pouco de fumo ou arroz. Deitava. Duas vezes por semana lavava os trapos que vestiam e os pendurava nos fundos da casa, sobre um arame farpado enferrujado e preto. E velho. Tudo parecia ser mais velho por lá. Inclusive ela, apesar de ser linda. Possuía um jeito e um rosto de mulher, apesar do corpo e a idade de menina. Era uma combinação estranha, mas bem sucedida. Fosse em qualquer outro lugar, já teria feito muito sucesso entre os homens. Mas lá, sequer conhecia alguém da mesma idade. Existia mais um solteiro na vila, duas casas depois, um rapaz doente que gritava todo começo de madrugada. Urrava sempre olhando o céu com uma das mãos tremendo de maneira frenética apontada para o sul. Todos já haviam acostumado. Ele dormia durante os dias e gritava durante as noites. Além dele, somente mais seis casais que também saíam cedo e voltavam tarde. Assim, sua companhia era o vizinho senil dormindo e mais ninguém. Para enfrentar os dias que sempre vinham, até na quebra da rotina ela criara uma certa rotina. Então, a cada lua cheia, dava-se ao luxo de fazer o que quisesse. Tomava banho de sanga, invadia as casas sempre abertas dos vizinhos (foi numa dessas visitas que descobriu o morto da cadeira de balanço), mexia nas poucas coisas que tinham, andava nua pela rua, fazia a comida em outra casa, enfim, o que viesse na ideia.
Pois numa destas investidas, em silêncio porque estava na casa do vizinho doente que dormia, espiou pela fresta da porta entreaberta e viu o corpo do rapaz deitado, nu, com o amarelo do sol refletido em seu peito e filtrado pelos cabelos. Olhou e voltou a olhar. E novamente. Apesar de ter se tornado mulher há cerca de cinco anos, nunca sentira nada antes, muito menos algo parecido com o calor que subia lá de baixo e deixava seus mamilos rijos. Sentiu um tremor nas pernas e um molhado denso entre elas. Saiu com pressa e correu os metros que a separavam da soleira. Ofegante, coloca uma mão na boca e a outra entre as pernas abertas, fecha os olhos e permanece até o anoitecer.

II

A noite estava clara, o rapaz levanta do colchão de palha, olha para fora e sai. Come o que encontra espalhado, e vai para frente de casa. Vira para o sul, aponta o dedo e grita. Grita o mais que pode. Grita e chora, e pragueja, e xinga e torna a gritar. Faz tanta força na mão apontada para o sul que ela treme como vara verde. Pára pouco antes de ficar afônico, senta e espera a noite amadurecer olhando para o céu. E ele gira lá em cima mostrando que o tempo passou. Em silêncio, caminha duas casas abaixo, faz a volta até os fundos. Encosta-se numa janela aberta e fica olhando, através dela, sob a luz da lua, o corpo prateado da menina, as formas difusas e belas. E delicia-se com a imagem, protegido pela escuridão. Não pensa em nada, em mais nada, exceto no corpo adormecido e puro, e se masturba com vigor. Assim faz todas as noites. Pouco antes do dia amanhecer, já voltando para sua casa, reconsidera que os gritos e a performance noturna ainda eram o melhor jeito de proteger sua vida, seu desejo, seu amor. Então, espera ansioso o dia passar e quando a noite se debruça sobre tudo, novamente os gritos, os choros, o desespero e a sua menina depois. Assim foi nos próximos e nos distantes dias.

III

A menina mudou a rotina. Agora visitava a casa vizinha todos as tardes. O molhado começou a ser diário e ela acabou descobrindo o prazer. Também, nos próximos e distantes dias, fez tudo igual.

IV

E foram felizes para sempre.
Contato com o autor: 3am.beto@gmail.com

Ladrões do Tempo.

- É só apertar no reck e no play, ao mesmo tempo.
- Mas que merda, Ronaldo! Não tinha nenhum aparelho mais moderno para trazer não? Vamos gravar aquilo que poderá mudar toda a história da humanidade numa porcaria de gravador comprado num camelô?
- Dane-se a história da humanidade, Téo, não vê que já está gravando? Cale essa boca.
- Óquei, óquei.
Pigarreou e prosseguiu, falando bem baixinho.
Estava desconfortável embaixo daquela mesa.
- Estamos aqui, eu, Téo Soares, e meu companheiro, Ronaldo Altair, para provar aquilo que a humanidade já imaginava...
- Que chato, você! Porque fala tanto em humanidade, heim? Que obsessão!
- Dá para ficar com essa maldita boca fechada? Você está me interrompendo!
- Tá, desculpa, vá em frente Dr. Humanidade.
Téo resmungou.
- Como eu dizia, estamos aqui para confirmar aquilo que todas as pessoas já desconfiavam, apenas não conseguiam acreditar – e deteve-se, fazendo mistério – O que você vai escutar agora é uma reunião entre os homens que estão roubando o nosso tempo. Sim, meus caros amigos, vocês não ouviram errado: estamos sendo assaltados impiedosamente.

Se acomodou melhor e viu que Ronaldo estava distraído.
Pensou que o amigo era um paspalho mesmo, e que deveria ter chamado outra pessoa para ajudá-lo a desvendar crime tão safado.
Crime que Téo não demorou a perceber.
Demorou, sim, a acreditar.
Até porque não fazia nenhum sentido.

Uma noite reparou que seu dia havia sido menor que o dia anterior.
Era um homem pragmático, com uma rotina muito bem planejada: as sete acordava, as 8 ia trabalhar, as 9 ia ao banheiro (seu intestino era um relógio), as 10 tomava seu comprimido para dor de cabeça.
Um belo dia acordou as 7 e 5, e faziam 22 anos que ele acordava às 7 em ponto.
No outro, chegou 11 minutos atrasado no trabalho.
E havia saído de casa no mesmo horário, não havia enfrentado engarrafamentos, nada.
Como poderia?
A gota d’água aconteceu quando, ao invés das 9, foi ao banheiro as 9 e 10. Não podia ser possível, seu intestino jamais cometeria tamanho atraso!
Então começou a notar.
Seus horários estavam todos errados: acordava as 7 e 5 e passou a chegar atrasado em tudo quanto era compromisso – tanto que precisou sair 10 minutos mais cedo de casa, toda vez.
E para isso precisou acordar e ir dormir 10 minutos antes.
Apelou para o despertador, pois não estava acostumado a mudanças bruscas de horários.
E foi aí que teve certeza.
Programado para apitar às 7, as 7 o despertador apitou.
Téo abriu os olhos, espreguiçou-se, sentou na cama.
E já haviam passados 10 minutos!
De uma hora para outra e num piscar de olhos, literalmente.
Levantou sobressaltado e decidido a descobrir que merda estava acontecendo.
Não era possível: ele viu as horas quando abriu os olhos, e eram 7, e então sentou na cama e já haviam passados dez minutos?
Será que o relógio havia enlouquecido?
Será que ele havia enlouquecido?
Correu até a cozinha e verificou o relógio de parede: 7 e 12.
Como nunca havia percebido nada?
Logo Téo, tão observador!

Ligou para a empresa e avisou que não iria trabalhar porque estava doente.
Havia bolado um plano – um plano bastante monótono, é verdade, mas um plano: passaria o dia inteiro olhando seu próprio relógio virar minuto a minuto, segundo a segundo.
Por mais descabido que pudesse parecer, Téo tinha certeza que haviam roubado dez minutos do seu dia.
E assim passou, olhos fixos nas horas.
E foi-se a manhã, e foi-se a tarde.
Téo já começava a sentir-se um imbecil:
- Tenho que parar de assistir ficção científica.
Seus olhos doíam, mas ele pôde ver quando aconteceu: às cinco e catorze da tarde, ao invés do relógio virar para cinco e quinze, trocou para cinco e vinte e quatro.
Levantou assombrado.
Olhou imediatamente para o relógio na parede e, inexplicavelmente, ali também haviam transcorrido dez minutos em um.
Sentiu seu coração acelerar e bater em sua garganta.
Estavam mesmo roubando seu tempo!

Mas quem e por quê?
Seria só o seu ou também o das outras pessoas?
Telefonou para quatro amigos e pediu as horas, e todas conferiam com a de seu relógio usurpado.
Seu relógio não, pensou, sua vida!
Quantos minutinhos já não tinham misteriosamente desaparecido, sem que ninguém pudesse dar-se o trabalho de perceber?
Claro, eram pouquinhos, quem notava deveria acreditar que era a vida, que andava corrida, e nunca o tempo, que era roubado.

No dia seguinte, lá estava novamente Téo, ligando para a empresa para avisar que ainda estava doente.
Queria saber quantas vezes a cada 24 horas os safados, sejam lá quem fossem, roubavam seus minutos vitais.
No final das contas isso deveria representar uns bons anos de vida.
Então era por isso que acreditávamos que as pessoas viviam mais quando, na verdade, os anos é que estavam mais curtos.
Que terrível.
Muniu-se com café e sentou-se na frente do relógio.
De vários relógios, na verdade.
Precisava ter certeza.

Desta vez demorou mais.
Já fazia quase 18 horas que estava ali, sentado, quando observou: das 22 e 3 os relógios passaram para 22 e 10.
Inclusive os que estavam adiantados e atrasados: todos saltaram 7 minutos.
Téo anotou isso em sua caderneta.
Depois, somente às duas da manhã os relógios pularam novamente, e desta vez 10 minutos.
Só aí já foram 17.
E às 5 da manhã, quando o pobre mal conseguia manter os olhos abertos e sua gastrite já avisava que era hora de suspender o café, aconteceu de novo: das 5 e 5 fomos para as 5 e 13.
25 minutos roubados descaradamente em 24 horas.
175 minutos por semana, 750 por mês, 9 mil 125 por ano!

Estava chocado, mas, principalmente, intrigado.
Quem, onde, porque, de que jeito?
Foi o que descobriu, após muita investigação.
E agora estava ali, embaixo de uma mesa, prestes a comprovar por A + B o que já tinha certeza absoluta: estavam roubando o nosso tempo.
Safados.
Só se incomodava de ter de registrar tão significativo momento em um gravador de camelô.
Fitas cassetes, quem usa isso ainda?
E Ronaldo foi uma péssima escolha para assistente de investigação, pensava Téo.
Era muito burro, e parecia pouco se importar com o que estavam prestes a comprovar.
Seriam condecorados, considerados heróis, talvez ganhassem até uma estátua no Museu de Cera, e Ronaldo ali, mascando um chiclete.
Então, um estalo chamou a atenção dos dois para o gravador.
Os botões reck e play simplesmente desligaram.
Téo os pressionou novamente, mas era como se as molas do acionador tivessem arrebentado.
- Mas que porra é essa?
Ronaldo fez uma careta:
- Putz, parece que o gravador estragou.
- Estragou é? Pois o que deveria estar estragado era o espermatozóide do teu pai, seu maldito! E agora, o que vamos fazer? O que será de nós? O que será da humanidade?
- Ah, quer saber? Não tô nem aí para a humanidade. Lamento pelo que me roubam nos finais de semana, mas se quiserem continuar levando meu tempo de trabalho, fazem é um favor. E tô indo, porque ficar acocado embaixo dessa mesa destruiu meu nervo ciático.
Ronaldo saiu, abriu a porta e se foi.
Então eles, os usurpadores, entraram e acomodaram-se em seus lugares: a reunião ia começar.
E Téo ficou ali, com o gravador estragado na mão.

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- Uma coisa precisamos admitir: ele conta esta mesma história, em cada minúsculo detalhe, desde que chegou aqui.
- Daria um bom escritor, se não estivesse demente.
- O mais engraçado é que ele foge de todos os protótipos de doentes mentais que já conheci, e olha que lá se vão 30 anos trabalhando em manicômios. Téo é um sujeito muito pacífico, fala pausadamente, não perde nunca a tranqüilidade e, o mais impressionante: não se contradiz.
- O que não significa que não esteja louco.
- Claro que não. Onde já se viu, ladrões de tempo... Por mais que, muitas vezes, eu também tenha essa impressão, sabemos que o tempo é algo impossível de ser surrupiado.
Médico e enfermeira observaram por mais alguns minutos Téo sentado em sua cama, olhando fixamente para um relógio de pulso parado.
- Doutor, não quero lhe apressar, mas já são 6 horas.
- 6 horas? Meu Deus, o tempo voou! Agora a pouco eram cinco e meia! Tenho uma reunião, preciso correr. Até mais.
- Até.
E lá dentro do quarto gradeado e branco, Téo resmungava com a mesma parcimônia que lhe era característica:
- O tempo não voa. O tempo desaparece.
A enfermeira suspirou e percebeu que já eram 6 e 10.
- Nossa! Preciso ir também.
E nas paredes de todo o mundo, todos os relógios continuaram a virar, segundo a segundo, minuto a minuto.
Sem que ninguém pudesse perceber.

Jana Lauxen escreve: http://www.janalauxen.blogspot.com, http://www.3ammagazine.com/brasil, http://cafeespacial.wordpress.com e http://www.jornalvaia.com.br
Contato com a autora: 3am.jana@gmail.com

Fome.

Santos tinham visões porque jejuavam. Nada de divino, poderoso, extraordinário. Pura e simples inanição. Falta de nutrientes, hipoglicemia. Dias e dias sem comer resultavam em miragens, algo como sonhar colorido de olhos bem abertos. Os profetas tinham revelações da fome.
Ela sentou-se à janela olhando o azul bruto do céu e perguntou a ninguém se outras fomes poderiam provocar alucinações. Períodos longos de privações afetivas produziriam algum tipo de ilusão sensorial? Anos de sexo sem orgasmo fariam que tipo de efeito psicodélico surgir de repente, do nada? Não sabia. Intuía que coisas nela haviam mudado, acontecido. Sabia por que tinha tido visões. Na primeira vez, achou que fosse apenas um desmaio seguido de um estranho sonho desconexo. Nas outras três, houve apenas o medo, seguido de uma inexplicável calma interior.
Pensava se estaria louca, insana, alguma coisa embolorando dentro do cérebro. Não! Suas capacidades respondiam perfeitamente às necessidades. Tudo normal. A mutação ocorrera, era fato. Porém, nada de externo a denunciava como diferente. Nada mostrava ao mundo ser ela a nova profetisa do grande vazio, mártir caótica sem inquisição, santa sem hordas em procissão ou prece.
Sabia só que tinha um propósito, uma missão. Sem cultos, templos, nem fiéis. Apenas uma tarefa a cumprir em gratidão ao dom recebido. A quem servia? Isso ela não sabia. Talvez a nada, a ninguém. Mesmo assim, seguia em frente no que se tornara o trabalho da sua vida. Tarefa solitária, lenta, desalentadora, mas dela.
Voltou a cabeça quando percebeu que o som da água que caía do chuveiro havia cessado. A porta se abriu e viu que ele surgia sorridente no quarto, vindo do banheiro. Ela também sorriu. Ele abraçou-a. Ela o beijou com enorme doçura e se abriu para recebê-lo em sua vagina repleta de novos e afiados dentes.
Contato com a autora: denise_ravi@hotmail.com